Um ano e pêras

Foi um ano e pêras. O que quererá isto dizer? Talvez tudo e nada ao mesmo tempo. Pêras? Na verdade, foi um ano para esquecer, mas com muito mais para recordar. Foi certamente um ano diferente, pensando em tudo o que tenho em mente. 
Faz um ano, estava a visitar as caves mais profundas da vida; agora canto empoleirado em telhados bem vistosos, acompanhado por dezenas de outras aves canoras. A vida é um vai e vem entre caves e telhados, entre divisões bem bolorentas e outras onde a primavera entra pelas janelas e toca em tudo à sua volta. Era pai e agora sou avô da princesa mais bonita deste mundo. Há um ano a princesinha passou a existir, agora já é gente de corpo inteiro. Nasceu e foi logo convocada para visitar as caves, mas ela disse-lhes que somente queria viver em casas soalheiras, cantar empoleirada em telhados vistosos, ter imensas janelas, aves a cantar nos quintais.
Um ano horribilis como dizia a rainha, mas com tanto de bom que o horrendo refugiou-se nas suas cavernas. Houve separar e unir; houve família e amigos; encontrei um novo grupo de belos seres, adicionei um novo anjo à minha pequena colecção, um anjo canoro de olhar celeste. Os cristais sairam da sua cave, desatinaram, fizeram rodar o mundo; foram precisas manobras para os repor no sítio. Não bastava o mundo estar cheio de loucos, cada um na sua casita, perturbando a casa dos outros, obrigando que muitos se abriguem em caves onde o sol não entra. Quando voltaremos a ter paz? Em que cave foram aprisionados a bondade,  a compaixão e o perdão, o espírito do Natal?
Por estes dias sentimos o cheiro das caves devolutas de onde brota a esquecida finitude das nossas vidas: um amigo partiu. Fica a sua gargalhada, o gostar de estar à mesa, as longas conversas, o império Austro-Húngaro. As boas memórias ficam. 
Estamos tristes, mas é de novo Natal, estamos perto do final do ano, a casa está enfeitada, aconchegante, iluminada pelas velas, cuidamos que esteja bonita. Não temos pêras, mas os mais que tudo vieram, a princezinha faz que tudo o mais desapareça. Estamos juntos; preparamos a ceia; criamos memórias.

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