Cantar sem medo

Vestido de preto, voltou ao negro palco, em liberdade, acompanhado por umas dezenas de negros melros de bico amarelo. Mal sabia ao que vinha, mas disseram-lhe que seria bom, que as bruxas estavam em paz, à espera da lua cheia.

De súbito, ao sinal da abelha mestre, o negro virou cor, um arco-íris elevou-se no céu, as mulheres viraram pombas, os homens rouxinóis. Sorria, sorriam; cantava, cantavam; em uníssono declamavam palavras escritas a negro em folhas brancas.

Corpo de homem em canto de mulher, dezenas delas a seu lado, cantando, encantando. Dêem-me um corpo de mulher, destes que cantam e encantam, destes que nos dizem que o medo está lá fora, que o papão foi embora. A sua avó, as suas avós, a sua mãe, as suas mães, as filhas, as netas, todas as suas mulheres, sentadas na entrada do céu, por ali pairavam.

Para quem cantamos, mãe, quem são eles?

Que força é esta, mãe?

Estás tão bonita hoje.

Disseram-lhe um dia que a vida tinha de ser dura. Não patrão, não tem e a Luísa não sobe, a Rita vai cantar a sua balada, ela tem de ficar. Talvez não saibas, mas a arte é bela, a arte cura, a vida é leve por muito que puxes e voltes a puxar; a vida não é, nunca será, a mãe dos trabalhos, porque mãe é vida e sempre será. Não chores, patrão, não chores; escuta, limita-te a escutar o belo, a encantar-te. É simples. O coração que conte as muitas vezes que bateu naquele palco, que sorriu, as mães que abraçou, as infâncias que recordou.

Os seus anjos, que sempre o acompanham, fizeram guarda, ergueram-no do chão, seguraram-lhe a pasta, viraram as folhas, cuidaram que não falhasse uma palavra, uma entoação, um tempo, a melodia; trataram que seguisse as pombas e os rouxinóis, a batuta da abelha mestre e os seus olhos azul celeste, os gestos do colorido gafanhoto amarelo que por ali cirandava. Este, com um livro de estórias nas mãos, desfolhava ramos de belas palavras, lançava pétalas, alguns espinhos, uns poucos recados, nuvens de pólen colorido, cheiros e sabores deliciosos, boas memórias.

Por todas as meninas, cantaram sem medo, sabendo que o canto sempre voltará a nascer mesmo quando os dias insistirem em escurecer.

Piu!

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