Cordel
As estórias começam com “era uma vez”, mas nunca foi uma vez; é tudo ficção, resultado da difusa memória de cada um, fantasia, imaginação de uns quantos.
Dão-nos a liberdade, mas não sabemos o que fazer com ela. Por muito que nos concentremos no brilho, continuamos parados a olhar para uma fosca parede, atraídos pelo vazio, pela autoridade, pela lei do menor esforço, esperando uma reação do dono, uma pancada no dorso; tudo menos educação ou a sua ausência. Talvez, não sejam mais que reflexos da natureza humana, instintos, algo que nos resta dos primeiros anos de vida, uma parte do nosso genoma que nos leva a não tomarmos banho, a limitarmo-nos a passar as carnes debaixo de água.
Caminhamos tão embalados pela inércia que desconfiamos de quem nos diz que acontecem coisas muito estranhas quando paramos de respirar. Olhamos para o lado, fingimos escutar, esquecidos da nossa vulnerabilidade, absortos no desvendar dos dias, um tapete cada vez mais curto, mas que continuamos a desenrolar. Somos o esquecimento que seremos, escreveu Faciolince num livro soberbo sobre o seu pai, sobre a eternidade ou a sua inexistência.
Nem mais, ignoramos esse e muitos outros factos.
Somos muito pouco e seremos nada. Não queremos lembrar, sequer pensar em tal coisa. De outro modo, seria impossível seguir em frente ou tão simplesmente acordar. Preferimos mantermo-nos de pé, sobre um débil cordel que liga o nosso aparecimento a algo que não sabemos bem o que será e que raro mencionamos.
Como viver em paz com tudo aquilo que não dominamos, não sufocar a cada ínfimo instante de felicidade, não sentirmos inveja do mundo a girar, daqueles que têm fé e assim aguentam este caminho?
Não sei o que é ter noventa anos, como não sabia o que era aproximar-me dos sessenta, porque só ficamos a conhecer a textura de cada degrau quando o pisamos. Aparentemente iguais, na forma e tamanho, afinal não há um que seja cópia dos anteriores. Vamos subindo, um a um, vamos andando, ou talvez estejamos a descer, desandando.
Não sei.
Esquecemos o mais fundamental, o pensamento do antigo sábio: só sabemos que nada sabemos. À nossa volta, a maioria dá ares de saber tudo, sendo que os outros nada sabem. Não somos mais que sombras projectadas na parede de uma caverna, mas gostamos de pensar que estamos a evoluir, em progresso constante, sempre para cima.
Nada mais errado.
Na verdade, não saímos do mesmo ponto, não unimos pontos dispersos, outras coordenadas, limitamo-nos a enrolar a corda em torno de nós mesmos, do ponto inicial, do tempo que uma vez foi nosso, para no final tirarmos a grande conclusão: tudo é relativo, depende da perspectiva.
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