Cheiro
Apercebo-me que a pandemia tinha um cheiro, deixou uma memória olfativa. Hoje lembrei-me dela, cheirei-a. Todos teremos essa memória, reconheceremos o seu indelével odor, perceptível, omnipresente, para sempre na nossa lembrança. Quatro anos passaram do seu início. Como agora, era quase Primavera, mas o cheiro sobrepôs-se ao perfume das flores, ao quente do sol nas narinas, a tudo. Afundámo-nos nesse cheiro, na suspensão do tempo, num mundo em pausa, sem guerras, entregue a um só combate, esquecido de todos os outros.
Ainda não tinha acabado e já tínhamos regressado ao fel do ódio e da morte, às guerras. Longe, mas vêmo-las acontecer, todos os dias. Não são aqui, mas existem, não mais acabam. Para nós, felizmente, não têm cheiro e esperamos que não venham a ter. As memórias serão as que formarmos com o gosto amargo da impotência, da frustração, da raiva que refreamos, do eco do grito daqueles que morrem pela liberdade.
Que o amor nos salve, canta o poeta. Custa acreditar com tanto malcheiroso nas rédeas do mundo. Uma coisa é certa: quem se lembra do cheiro da guerra, não o quer recordar, certamente luta pela liberdade. O problema é a falta de memória, um desejo parvo de sentir-lhe o nauseabundo cheiro. Das duas, uma: ou os deuses estão desiludidos e não sabem o que fazer; ou os deuses não são bem o que queremos que sejam.
Fecho o frasco. O álcool-gel fica a pairar no ar, aviva a memória, lentamente evapora-se das minhas mãos vazias.
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