Sacudir as amarras

Sentado no transportador individual, atravesso a cidade, na rádio a voz dum poeta: “estamos a sacudir as amarras da pandemia”. Sete palavras que resumem aquilo que sinto: enxotamos o bicho que nos encurralou, que nos mantém atentos, que nos afasta. Queremos voltar, como quase sempre queremos; talvez agora mais que nunca. O regresso é um caminho individual, próprio, que agora se assume colectivo, num tempo cheio de sinais, símbolos e significados, que duvido saibamos ler. O que restará da cidade estranhamente silenciosa, das bolhas em que nos obrigamos a viver, do vazio dos abraços, dos beijos que já não damos, das mãos que não apertamos, do gel purificador de almas. À minha volta, os tempos fingem ser o que eram, as filas regressam, o frenesim da cidade ocupa-nos de novo os poros, os sentidos. Alguma vez não foi assim? Certo ainda não o é, mas queremos que seja. Ainda não é história, mas já começa a ser passado, a estar enevoado, a fazer parte das memórias planas, turvas, aquelas onde faltam pedaços, onde outros acrescentam torres que nunca existiram. No entanto, já não o sinto do deste modo. O contacto com a nossa finitude, com a de outros, bem próximos, torna tudo isto estranho, menor. Tudo é relativo, disse e tinha toda a razão. Um acontecimento só é grande até que outro maior o ofusque, o coloque na sombra. Já me dou por contente se a cidade continuar a ser o que já foi. #VaiFicarTudoBem 

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