Covid dia 17
Era uma vez um menino que sentia que tudo, mesmo tudo, já tinha acontecido; e isso deixava-o triste. Sentia que tinha nascido após tudo, tudo de importante que tinha moldado o mundo, moldado quem somos. Eles, os pais, os avós, os outros, tinham vivido as guerras, a primeira e a segunda, tinham ido para longe para o ultramar, combater outras guerras, viver outras vidas, tinham vivido em ditadura, estavam lá quando se deu o cinco de outubro, o vinte e cinco de abril, as cheias, a ida do homem à lua, e sabe-se lá mais quantos acontecimentos a sério. E ele nada. Tinha uma vaga ideia do 11 de Março, viveu o incêndio do Chiado e pouco mais. Nada mais tinha acontecido na sua vida. Mas a história não acaba aqui. O rapazinho cresceu e duma assentada, viveu a queda do muro, viu em directo a invasão do Iraque, a guerra dos Balcãs, a queda das torres gémeas, os atentados de Paris, Londres, Madrid, Oslo, a morte e a ascensão de vários Papas, a independência de Timor, a primavera árabe, os incêndios, uma Europa a crescer e a mirrar, a China capitalista, a eleição dum presidente negro nos Estados Unidos, a eleição de presidentes da pior espécie, a ascensão e queda do sistema financeiro, a troika, a geringonça e muito mais. E pensou: já chega! Mas enquanto ganhava folgo, a história resolveu dar-lhe um presente, o maior acontecimento da sua vida, aquele que nunca vai esquecer, aquele que os seus netos terão inveja porque não terão vivido algo igual. Como foi avô? Estiveram meses fechados em casa? Morreram milhares de pessoas à mercê dum bicho invisível? Tinham de lavar as mãos vinte vezes por dia e tinham de usar um escafandro o dia todo? E só aí percebeu que a história contada é muito mais interessante que a história vivida.
Hoje é o primeiro dia de Abril, dois mil e vinte. Não é mentira, não é história, continuamos em isolamento pelo décimo sétimo dia. Tenham uma excelente quarta-feira. Abraço.
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