Barqueiro

Aquele era o tempo
Em que as sombras se abriam,
Em que homens negavam
O que outros erguiam.
E eu bebia da vida em goles pequenos,
Tropeçava no riso, abraçava venenos.
De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala
Nem a falha no muro.
E alguém me gritava
Com voz de profeta
Que o caminho se faz
Entre o alvo e a seta.
(Pedro Abrunhosa)

Barqueiro

Era uma vez um franzino rapaz, calções de joelhos negros, solas rotas como chão; a cabeça com sonhos, rodeada de muros; hesitando a cada passo, receando o caminho, os cruzamentos, os encontros. Cresceu, fugiu, tentou ignorar, mas os muros continuaram lá.
Passou em frente a teatros, em alguns ousou entrar, sentiu o encanto do silêncio, das luzes, do som, da voz. A mais não se permitiu. Nunca passou para lá da negra cortina; sabia que ali havia sonho mas também miséria e loucura. Novos muros ergueu; era mais fácil ignorar, fugir, esconder.
Anjos deram-lhe a mão, teve sorte, levaram-no para longe dali, mas os muros prolongavam-se como por obra do diabo. Continuou a fugir, a ter sorte e a duvidar dela, a encontrar anjos bons e loucos, a perder armadura, a partir alguns muros. Até que um dia, um anjo de longos cabelos dourados lhe sussurra ao ouvido: entra, a vida não espera; entra neste sonho, faz parte dele, o barqueiro é homem de confiança, guia de muitas travessias. E ele embarcou, sem medos mas alguns receios e por ali ficou, encantado pela beleza dos outros navegantes, pelo saber do barqueiro, pela mestria da navegação em águas nem sempre calmas, pela serenidade do lugar, pelo gosto da descoberta, pelo lento apaziguar do receio.
Agora, caminha descalço, pela coxia central, de vestido verde e asas brancas, em direção a um palco. Quem és tu? Onde estás pai? Eles levaram os fantasmas, estou a caminhar, a pisar um palco. Quem são eles? Os muros e as armaduras, caídos lá atrás, repousam, aguardam; talvez ele volte atrás, talvez volte para eles; talvez os deixe descansar de vez. O pequeno rapaz franzino tem medo de ser feliz, não vá o diabo pressentir e chamá-lo de novo à terra. Tu, para ali. No limitado palco o mundo torna-se imenso, aconchegante. Durante um lapso de tempo nada mais existe, os fantasmas adormecem, a ansiedade deixa-o, a serenidade ocupa o seu lugar, o seu corpo é inundado por outro ser, a sua alma descansa. Uma massa linda de seres franzinos, tão esfarrapados, receosos e felizes quanto ele, acompanha-o nesta travessia. São dirigidos pelo louco barqueiro, por mais um anjo louco a cruzar a sua vida, mais um que lhe diz que a vida é bem mais simples do que nós fazemos dela; que os nossos fantasmas não são mais que isso mesmo, fantasmas.
E agora pai? Os fantasmas continuarão comigo sabendo que agora navego em outras águas, sabendo que fui tocado pela mão do barqueiro, pela sua vara encantada, mergulhei nas águas malditas, bebi dos néctares proibidos, partilhei alegrias e tristezas com os outros navegantes, pisei madeiras até agora interditas. O que faço agora, pai? O barqueiro quer-me levar de novo, talvez me faça, novamente, sonhar, talvez os outros navegantes nos acompanhem neste novo sonho, numa qualquer outra noite de verão.

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