Sereno Cadafalso
Ouviu o discurso mas não ficou para a carne assada. A dor dilacerava-lhe o lombo; sentia o lento derreter das omoplatas ao longo do dorso; o ombro pedia-lhe clemência; um profundo formigueiro percorria e arrefecia o que restava das extremidades. O corpo esquecido na dor, pedia umas horas de descanso, um pouco de paz, mesmo que o sono não o visitasse, mesmo sabendo que o colchão não seria mais que uma fria tábua, que as articulações o iriam chamar noite dentro.
Carlos Filipe sabia que a manhã seria, uma vez mais, igual a tantas outras, no cadafalso, nas mãos dela, num infinito estirar, torcer, rodar, na fronteira do possível com o insuportável e mais além. Entrara naquela prisão na firme convicção que estava inocente, que ninguém o iria vergar, que nem um só osso, um só músculo, seria vencido, que jamais pediria clemência ou sentiria qualquer rasgo de simpatia pelos seus torturadores. No entanto, vergado, chegou ao ponto em que a passou a tratar por tu, em que a cumprimentava delicadamente - com um sorriso até - a cada madrugada; a sentia sua amiga ou mesmo familiar; desejava estar ali, sentir o seu bafo, os calos e o negro das mãos, enormes, o trapo imundo em torno do dorso, o perfumado suor ao longo das costas, o camisolão escuro manchado; as unhas pretas dos dedos dos pés saindo dos buracos das grossas e gastas meias, as inexistentes sandálias; os sorrisos escondidos, os olhos raiados de sangue, os longos cabelos, quais cabos de navio há muito encalhado, os dentes inexistentes de tão sujos; a luz sumida, filtrada pelo pó de carvão acumulado nos vidros da única janela, as luzes eléctricas há muito apagadas, as velas incendiando o ar.
Conhecia todas as cordas e roldanas, cada grama dos pesos que lhe esticavam os membros, cada rasgo do pano sujo; o gosto insalubre da água escura que o obrigava a beber; os esqueletos acumulados a um canto (tratados carinhosamente por Boris, os seus Boris) anunciando o seu final; os ruídos e os gritos em volta, qual Versalhes em hora de ponta; o silêncio dos inocentes, paredes meias consigo, ligados às máquinas de eletrochoques controladas por outras peritas como ela; o lento cortar da pele, o escorregar das mãos ao longo do pano, o vinco nas palmas das mãos, no dorso, nas ancas, nos tornozelos.
A sorte que temos de encontrar a alma certa, aquela que percebe que está a bater em fraca porta, que nos lê de imediato, que conhece cada ossinho, cada músculo, cada tendão do nosso corpo, as nossas reações, os nossos medos, as fraquezas que utiliza para nos vencer. Lentamente, vamos sentindo que o nosso corpo muda, adapta-se a novas posturas, a rotações que julgávamos inimagináveis, surrealistas, que nos deixam delirantes, inebriados. Quando a dor nos abandona, quando já não faz parte de nós (fazendo) a tortura acaba, subimos a um outro estágio da nossa existência: chegamos a fingir que é dor, a dor que já não sentimos; aceitamos o impossível, o intolerável; aceitamos a obsessão de nos virar de cabeça para baixo; abandonamo-nos à náusea, sentimos uma réstia de prazer, uma serena euforia.
Carlos Filipe sabia que a manhã seria, uma vez mais, igual a tantas outras, no cadafalso, nas mãos dela, num infinito estirar, torcer, rodar, na fronteira do possível com o insuportável e mais além. Entrara naquela prisão na firme convicção que estava inocente, que ninguém o iria vergar, que nem um só osso, um só músculo, seria vencido, que jamais pediria clemência ou sentiria qualquer rasgo de simpatia pelos seus torturadores. No entanto, vergado, chegou ao ponto em que a passou a tratar por tu, em que a cumprimentava delicadamente - com um sorriso até - a cada madrugada; a sentia sua amiga ou mesmo familiar; desejava estar ali, sentir o seu bafo, os calos e o negro das mãos, enormes, o trapo imundo em torno do dorso, o perfumado suor ao longo das costas, o camisolão escuro manchado; as unhas pretas dos dedos dos pés saindo dos buracos das grossas e gastas meias, as inexistentes sandálias; os sorrisos escondidos, os olhos raiados de sangue, os longos cabelos, quais cabos de navio há muito encalhado, os dentes inexistentes de tão sujos; a luz sumida, filtrada pelo pó de carvão acumulado nos vidros da única janela, as luzes eléctricas há muito apagadas, as velas incendiando o ar.
Conhecia todas as cordas e roldanas, cada grama dos pesos que lhe esticavam os membros, cada rasgo do pano sujo; o gosto insalubre da água escura que o obrigava a beber; os esqueletos acumulados a um canto (tratados carinhosamente por Boris, os seus Boris) anunciando o seu final; os ruídos e os gritos em volta, qual Versalhes em hora de ponta; o silêncio dos inocentes, paredes meias consigo, ligados às máquinas de eletrochoques controladas por outras peritas como ela; o lento cortar da pele, o escorregar das mãos ao longo do pano, o vinco nas palmas das mãos, no dorso, nas ancas, nos tornozelos.
A sorte que temos de encontrar a alma certa, aquela que percebe que está a bater em fraca porta, que nos lê de imediato, que conhece cada ossinho, cada músculo, cada tendão do nosso corpo, as nossas reações, os nossos medos, as fraquezas que utiliza para nos vencer. Lentamente, vamos sentindo que o nosso corpo muda, adapta-se a novas posturas, a rotações que julgávamos inimagináveis, surrealistas, que nos deixam delirantes, inebriados. Quando a dor nos abandona, quando já não faz parte de nós (fazendo) a tortura acaba, subimos a um outro estágio da nossa existência: chegamos a fingir que é dor, a dor que já não sentimos; aceitamos o impossível, o intolerável; aceitamos a obsessão de nos virar de cabeça para baixo; abandonamo-nos à náusea, sentimos uma réstia de prazer, uma serena euforia.
Comentários
Enviar um comentário