Carta

Minha Querida Filha,
Espero que esta carta te encontre bem de saúde. Nós por cá vamos indo nas mãos de Deus, cada vez mais com saudades tuas. Que bom foi poder ver-te, de novo, através daquela maravilha da tecnologia actual que nos liga de quando em vez. Estás tão crescida, quase não te reconheço: com certeza vieram novamente trocar-te ou fizeram-te uma actualização; desta feita, como sempre, melhoraram o que já por si era perfeito. Estou tão orgulhoso que me faltam as palavras. É tão bom ver-te assim: integrada, feliz, senhora do teu mundo, educada e inteligentemente respondona (o corrector diz que a palavra não existe mas eu gosto dela); acolhida e respeitada; encantada com os novos amigos espanhóis, americanos, alemães, indianos e de muitas outras origens. Na verdade, não esperava coisa diferente: acho que temos alguma culpa deste teu caminho; alguma coisa fizemos bem para merecer tal fortuna.
Quanto aos dinheiros, sabes que podes, sempre, contar com estes pobres pais. O importante é alimentares-te bem, teres saúde e não passares dificuldades. Preocupa-me estares aí, pelo centro da Europa, nestes tempos conturbados, de luta entre civilizações. Quase que tenho saudades dos tempos da guerra fria, quando tinha a tua idade. Agora percebo que era muito mais simples: havia os bons, nós e os Americanos, deste lado; do outro lado, os maus, os soviéticos, os comunistas. No meio, a cortina de ferro e o arsenal nuclear. Muito mais simples. De quando em vez, uma ameaça, um pouco de fricção, algum suspense, um novo acordo Salt (acho que era assim que se chamavam) e tudo voltava ao mesmo equilíbrio, à mesma paz podre. O médio oriente não existia, com excepção da Palestina e o eterno conflito com os israelitas; eram completamente ignorados; poucas notícias havia do que se passava com essas gentes. Sabíamos que vinha de lá o petróleo e que, às vezes, reunia-se a OPEP para nos entalar com os preços. Muito mais simples. Depois caiu o muro e ficámos contentes: foi por altura do nascimento do teu irmão. Foi sol de pouca dura; logo começámos a ficar preocupados: o Iraque invadia o Kuwait e o Ocidente entrava na guerra do golfo. Daí para cá tudo se complicou: continuamos a ser nós mas os outros passaram a ser outros, vários, difusos, sem uma clara identificação, os misseis nucleares foram substitutos por coletes de bombas.
Quando era jovem costumava pensar que tudo de importante já tinha acontecido; ficava triste; queria fazer parte da história da humanidade, viver momentos importantes, marcantes. Agora fico triste por os viver. Nada melhor que nada acontecer; nada melhor que viver em paz, mesmo que podre. Com o tempo tornei-me mais conservador, mais desejoso duns tempos de acalmia. A sorte e o azar da vossa juventude são afinal semelhantes às que eu e a tua mãe tivemos na nossa. Somente a realidade é outra. Hoje, parece-me mais complexa esta que vós enfrenteis, que todos vivenciamos. Daqui a uns anos, olhando para trás, talvez olhemos de diferente maneira para este vosso tempo, como agora olho para o meu, com a devida distância.
É bom saber-te amiga de tantas gentes diferentes; talvez aí esteja a esperança, uma semente para um mundo melhor, mais próximo, sem fronteiras, livre, fraterno e solidário. Ontem lançámos balões de ar quente, libertámos desejos. Hoje fomos à feira de Natal, estamos no Advento. Era bom que fosse o advento duma nova era, dum permanente espírito de Natal, de esperança. Sei que me vou desiludir mas desejar tempos melhores nunca fez mal a ninguém.
Um beijo deste teu pai que te adora. Aguardamos ansiosos as férias, o teu regresso, mesmo que temporário, para poder abraçar-te.

Lisboa, aos vinte e nove dias andados do mês de Novembro, do ano de dois mil e quinze da era cristã.

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