No Natal voltaremos a ver-nos
Está fresco em pleno Verão, o bastante para nos sentirmos desconfortáveis. É o Verão deles com ares de Outono pré-anunciado. Estranhamos a cidade: não existe um centro claramente definido; existe gente e animação por todo o lado. Percorremos as ruas procurando orientação, habituação. Logo, logo, sentimo-nos parte, acolhidos. Gostamos dos eléctricos, dos barcos nos canais, dos prédios tortos, encostados uns aos outros para não tombarem. Na loja dos queijos falamos português, apreendemos os sabores, percebemos as cores. Descobrirmos uma igreja atrás dum prédio - numa porta como qualquer outra -, acendemos uma pequena chama, sentimos protecção. Vagueamos sem destino, simplesmente desfrutando, saboreando a cidade, os seus cheiros, as suas cores, as diferentes gentes.
Um novo dia, uma nova luz, calor (ou, pelo menos, o sol chega-nos, aquece quando o enfrentamos). Percurso previamente estudado; apanhamos o eléctrico para a linda praça dos museus. Encontramos a arte moderna num belo edifício de linhas modernas assentes em antigas paredes. Procuramos as raízes de Amesterdão na Sinagoga Portuguesa. Descobrimos que, quatrocentos anos antes, para aqui fugiram os nossos judeus e que aqui mantêm a nossa alma. Têm orgulho nas suas raízes, nos seus apelidos, na sua religião. Visitamos, respeitosamente, as diferentes salas e, por fim, entramos na grande sala - primeiro a zona reservada às mulheres, depois o corpo principal onde rezam os homens. Não entendemos o pó no chão e no mobiliário. Pedimos explicações e ficamos na mesma: dizem-nos que é pó de incenso; custa acreditar.
Calcorreamos um pouco mais, flutuamos lentamente nos canais, admiramos as casas barco e resolvemos jantar perto da universidade. Desconhecemos os sabores, os cozinhados. Os canais estão cheios de pequenos barcos em festa; existem zonas de acumulação, num caos festivo, sabiamente resolvida. Descemos para o porto e mergulhamos no Festival da Navegação, no porto, nas novas zonas modernas conquistadas ao mar. São às centenas as embarcações, são milhares de pessoas. Sentimos nossas a Sagres e a Santa Maria Manuela (combinado não teria sido tão bom). Brincamos com os marinheiros. Fazem continência sorriem e continuam o seu trabalho. Andamos até que as pernas pedem descanso. Voltamos no nosso já conhecido vinte e quatro.
Sentados num típico café, tomamos o café da manhã, escutamos a cidade a acordar. Hoje o sol veio novamente visitar-nos; está bonito o dia, despimos os agasalhos, é de novo Verão. Hora de partir para o segundo destino. Apanhamos o comboio; a cidade fica suavemente para trás. Conseguimos beber um pouco da sua vida, do que tinha para nos dar. Daqui a pouco seremos novamente quatro, por alguns dias assim será. Encontrado o primogénito, com o transporte tratado, partimos para a estrada. Aportamos no novo poiso, um hotel numa terra desengraçada. O cansaço toma conta de nós após alguns quilómetros e visita curta à cidade medieval de Utrecht. Aqui as autoestradas são largas, gratuitas, ladeadas por verde até onde a vista alcança. Ficamos com a sensação que esconderam as montanhas; não é educado da parte deles mas torna as vistas abertas, os horizontes mais largos, o verde mais encantador - uma espécie de gigantes relvados. Somos guiados pela voz do orientador electrónico. A música de fundo é má mas hoje não há melhor. Estranhamos a comida; demasiado bom pão; demasiados molhos e especiarias (não tivessem eles colónias na Ásia faz poucos anos); o corpo queixa-se; é preciso continuar. Precisamos dum jantar calmo e duma noite de sono. Amanhã será outro dia.
A terra dos Delftos é bonita. Têm um encanto especial as suas ruelas, casas, lojas e igrejas. Em todas as terras encontrámos igrejas católicas, protestantes. Aqui existe a nova e a velha basílica além de outras que não visitámos. Chove a espaços. Saboreamos o antigo mais que passeamos. É tudo tão limpo, arrumado, bonitinho, que até mete nojo. É assim por toda a Holanda (se considerarmos Amesterdão, como Babilónia multicultural, um caso à parte). Descemos até Haia e passamos para o século vinte e um. Esperávamos uma pequena vila e temos à nossa frente mais uma capital, prédios modernos, até aos céus. Bom encontrar a zona histórica, velha e bela, efervescente de gentes e comércios e a deslumbrante Passage em estilo Belle Époque. Um contraste total com as torres de ferro e vidro ali logo ao lado. A rapariga com brinco de pérola olha para nós, pela primeira vez, no original. É bonito o museu, uma coleção de interessantes pinturas, num lindíssimo edifício com alguns séculos. Avançamos para Roterdão. A cidade esmaga em grandeza e altura. O belo porto está rodeado de altos blocos de escritórios: um contraste interessante, bem conseguido, entre novo e antigo. "Primeiro o teu pai", fica como frase do dia, saudade de outra companhia, marca de ascendência jamais esquecida. O regresso faz-se pelo meio dos campos: desta acertámos com o caminho e ficamos encantados; uma estreita estrada, com espaço para carros e bicicletas, no meio dos frescos campos.
Acordamos e partimos para mais uma jornada: viagem pela terra das tulipas, por estradas verdes, duma beleza que nos enche a alma, nos acalma o espírito, cura para todos os males. Aqui ainda parece ser tudo mais bonito, se tal é possível. Somos crianças avançando pelos campos, maravilhados com as ovelhas, carneiros (que o Manuel apelidou de Porcos), vacas, patos, gansos e cavalos. As estreitas estradas ladeadas de árvores enchem o olhar, maravilham-nos. Um outro hotel espera-nos no meio dum bosque. Percebemos de imediato que este jamais iremos esquecer, é especial. Deixamos as malas e partimos em direcção à costa, procurando o oceano. Somos surpreendidos por uma extensa praia de areia fina e mar calmo, cheia de banhistas. Medida a temperatura da água (não tão fria como esperávamos mas o suficiente para desaconselhar banhos de corpo inteiro), sentamo-nos para um almoço leve na esplanada: está calor; podia ser um almoço de verão numa qualquer praia nossa conhecida, de outras paragens mais a sul. Voltamos ao hotel para completar o check-in, conhecer os campos em redor e dar um pulo à vila. Jantamos na varanda do hotel, mergulhados em verde, num espaço algo colonial. Ouve-se água a correr e o cantar dos pássaros. São vários, cada um com o seu cantar.
Acordamos com promessa (cumprida) de pequeno-almoço à maneira. Está fresco mas o sol promete. Ouvimos vozes, nas outras varandas, chamando para o novo dia. Devidamente alimentados, partimos com rumo apontado a ocidente, ao oceano. Chegados ao primeiro destino, caminhamos à beira-mar ("aan zee" na língua deles). Está fresco mas sabe bem. As crianças brincam com a areia e conchas como em qualquer outra praia. O mar é um pouco mais cinzento, reflexo do céu menos azul. Sopra uma ligeira brisa que aconselha a um leve agasalho. Molhamos os pés no mar calmo (estranhamos a ausência de ondas), mais não dá para quem vive habituado a outras temperaturas. Existem curiosas pequenas casas, na praia, junto às dunas. Um parque de campismo de luxo, ao longo do areal, em pequenos bungalows. São simpáticos, cumprimentam quando passamos. Voltamos à estrada, para o interior. Procuramos a terra dos moinhos (Zaanse Schans). Uma reserva, tipo Disneylândia, de treze moinhos recuperados dos mil que existiram em tempos. É interessante e damos o tempo por bem passado. Mais uns poucos quilómetros e entramos em Alkmaar (soa a árabe), pequena terra, silenciosa, arrumadinha. Comemos tostas num jovem café. Dobramos a esquina e está instalada a feira. Um estranho contraste entre a ausência de ruído, nas primeiras ruas, e o caos pimba nas ocupadas pelos mais diversos divertimentos e rulotes. No que se refere às feiras conseguem bater-nos aos pontos em foleirada e em arrumação. Preferimos as ruas calmas e o silêncio. Afastamo-nos na direcção do mar, rumamos a Edgmond aan Zee. Uma típica vila de praia, como as que conhecemos nos mares do sul, incluindo um certo caos urbanístico.
Mais uma noite de sono, um apetitoso pequeno-almoço e, com pena, abandonamos o pequeno hotel no meio do bosque. Uma pérola que o acaso nos deu a conhecer. Partimos para a derradeira etapa, rumo a Groningen, a terra que a Princesa escolheu para estudar nos próximos meses. Temos duas centenas de quilómetros pela frente, uma navegação fácil através dos planos prados verdes deste belo país. Está frio novamente: muita sorte seria se assim não fosse; choveu durante a noite mas a manhã acordou com um sol tímido. Rodamos por estradas secundárias, pelo meio dos campos e das pequenas aldeias e vilas. Vive-se bem por estas paragens. É tudo muito igual mas belo: casas baixas, algumas com telhado de colmo, todas preparadas para a neve; campos verdes; canais de água esverdeada; vacas, cavalos e ovelhas. A estrada é paralela ao mar interior mas não o vemos; o dique protector esconde o azul para lá da barreira verde. O silêncio rodeia-me enquanto escrevo, vejo o mar e os omnipresentes aerogeradores. Um canto virado ao mar, lindíssimo. Agora estamos em cima do dique, da travessia, temos mar de ambos os lados, temos vista para o mar interior, cruzamos o estreito para o lado de lá, para Nordeste, por cima duma fina linha de terras conquistadas, entre o mar do norte e o mar interior. Chegados, procuramos o apartamento que nos acolherá nos próximos dias. É bonito: típica casa de altas janelas, desconexa, no centro da cidade, com espaço para todos. Apressamo-nos a sair; vamos visitar a residência onde ela vai viver nos próximos meses. Simpático o acolhimento; bonito o bairro; estranho o edifício (a primeira impressão é sempre assim). Comprarmos no Ikea o necessário para preencher o vazio do quarto e dar-lhe conforto - ganha cor e começa a ser dela; brevemente será um ninho confortável e pessoal. É o dia de todas as dúvidas e de algumas certezas, para ela e para nós. É o dia do “onde fui eu meter-me”, do “vou conseguir”, do “ela ficará bem aqui”. A preocupação e o cansaço tomam conta do humor, a refeição ajuda a relaxar (nunca um jantar no Ikea soube tão bem). Voltamos para descansar.
Choveu durante a noite; o sol espreita timidamente; faz frio. A cidade está a despertar; somente o mercado e a padaria estão abertos. Compramos o necessário e tomamos o pequeno-almoço rodeados de luz cinzenta, sabores e silêncio. O pão é bom, com queijo e fiambre ainda melhor. Daqui a pouco desceremos e encontraremos a cidade acordada, bem à nossa porta. Somos recebidos pelo, sempre presente, som metálico dos corvos. Chuvisca e faz sol (não sei se as bruxas comem pão mole por estas bandas, ainda não vi nenhuma). O vento sopra frio quando o sol se esconde; sabe bem (em Agosto) entrar nos espaços fechados; aconselha um agasalho. Aproximamo-nos da estação; daqui a pouco seremos novamente três; ele regressa mais cedo. A manhã faz-se esperando a hora da partida, conhecendo alguns dos cantos da cidade. Daqui a alguns dias seremos outros três em Lisboa; ela ficará conquistando o seu futuro. A tarde passa-se arrumando o futuro quarto dela: uns ligeiros pormenores e passa a ser um ninho aconchegante e personalizado, bem cheiroso; ficará bem aqui; o bom humor regressa. Todos queremos comida normal para repor o corpo. Procuramos um super e compramos o necessário para um simples mas delicioso jantar.
A presença das bicicletas altera as regras de trânsito e a mobilidade dos peões e dos carros. Se mandasse nisto tudo, proibia as bicicletas. Nunca sabemos o que nos espera; são silenciosas; não respeitam as regras de trânsito. Atravessamos campos imensos a procurar o mar; as barreiras impedem que o façamos; as estradas estão abaixo da linha de água. Vemos ovelhas, vacas e cavalos por todo o lado. Nunca tínhamos visto tantos cavalos soltos como aqui. O ar está empestado de estrume; choramos de tanto rir com piadas sobre o cheiro nauseabundo. Estacionamos perto da fortificação, destino primeiro neste dia. Uma bonita reconstrução duma antiga fortaleza junto da fronteira com a Alemanha. Atravessamos para o lado de lá; custa a perceber onde acaba um país e começa o outro. Somente um pequeno sinal azul com o nome rodeado de estrelas, uma ligeira alteração no estilo das casas e a diferente língua nas placas, marcam a leve diferença. Percorremos alguns quilómetros em estradas rurais e voltamos à Holanda. Rumamos a Delfzijl, pequena vila piscatória, no topo norte. Parece que o tempo sofreu algum tipo de distorção estranha neste lugar: a idade média dos habitantes é demasiado elevada. Sentamo-nos num café mas não conseguimos parar de rir, temos que nos levantar e voltar a Groningen.
E mais um dia e uma noite passaram. Quando sabe bem o tempo passa depressa. Vou escrevendo nas pausas. Agora é manhã, cedo. Soube bem o pequeno-almoço: café e pão fresco comprado ao cimo da rua; para rematar, um croissant acabadinho de fazer. Contínuo a estranhar o silêncio, estando num apartamento no centro da cidade. As altas janelas, muito mais altas que as nossas, deixam entrar a luz e ver o céu cinzento acima dos telhados. O dia está feio mas contamos que não chova - tem sido esta a norma. A noite foi de chuva forte: tem sido assim desde que chegámos ao norte; hoje foi mais intensa e prolongada. É o último dia completo que estamos com ela antes de partimos. Amanhã será a recepção na universidade e o regresso, a Lisboa; a Princesa fica neste seu novo reino, por alguns meses. Hoje temos que terminar uns poucos afazeres; aproveitar o tempo com ela. Procuramos um casaco adequado ao frio que aí vem. Escrevo à porta das lojas enquanto elas entram e saiem - o acto de escolher é misterioso, comandado por forças ocultas, imperceptíveis. Subimos ao último piso, procuramos as toiletes. É dos poucos países onde temos que pagar (30 cêntimos) para fazer chichi ou outra qualquer necessidade. Em uma semana, já nos levaram o suficiente para limparem as casas de banho por um ano. Continuamos a visita matinal às lojas. Um pouco provinciano mas alguma coisa havemos de encontrar numa das muitas lojas que há por aqui. Paramos para mais um café e uma tarte de maçã. O dia avança, mais pesaroso que os anteriores. Não sei o que escrever além da saudade que já está instalada. Vamos uma última vez à sua residência, tratamos das últimas contas e arrumações: a internet finalmente funciona (por cabo). Aqui para ter um passe temos que ter uma conta num banco holandês; para ter uma conta temos que ter residência. Os cartões Visa não são aceites na maioria das lojas; voltamos a ter dinheiro vivo na carteira - algo que ainda não percebemos mas que ela irá resolver. Encontrada uma solução de recurso avançamos para o jantar. É quando descobrimos que fecham as cozinhas às nove. Temos que improvisar e tornar este momento em algo de especial: um cachorro na feira e um hambúrguer no McDonalds salvam a noite.
Últimas horas. Acordamos cedo e tomamos o pequeno-almoço na padaria da esquina. Foi fácil chegar à universidade. Um espaço bonito; estamos rodeados por gentes de todo o mundo, de todas as raças, do sol nascente ao ocidente, parece que estão todos representados. Ela está contente, só quer que a espera acabe; nós estamos apreensivos. Tudo começa e acaba a horas. A cerimónia de boas-vindas foi bonita. A garganta aperta-se, os olhos ficam banhados. Temos de partir e ela tem que seguir os novos colegas. Um misto de orgulho, tristeza e alegria apodera-se de nós: algo de bom fizemos nesta vida; o futuro dela irá construir-se aqui, longe de nós, perto do mundo. Duzentos quilómetros separam-nos do aeroporto. Partimos, regressamos os dois (iremos ser três em Lisboa), ela ficará aqui adicionando uma etapa mais ao seu crescimento. No Natal voltaremos a estar juntos.
Um novo dia, uma nova luz, calor (ou, pelo menos, o sol chega-nos, aquece quando o enfrentamos). Percurso previamente estudado; apanhamos o eléctrico para a linda praça dos museus. Encontramos a arte moderna num belo edifício de linhas modernas assentes em antigas paredes. Procuramos as raízes de Amesterdão na Sinagoga Portuguesa. Descobrimos que, quatrocentos anos antes, para aqui fugiram os nossos judeus e que aqui mantêm a nossa alma. Têm orgulho nas suas raízes, nos seus apelidos, na sua religião. Visitamos, respeitosamente, as diferentes salas e, por fim, entramos na grande sala - primeiro a zona reservada às mulheres, depois o corpo principal onde rezam os homens. Não entendemos o pó no chão e no mobiliário. Pedimos explicações e ficamos na mesma: dizem-nos que é pó de incenso; custa acreditar.
Calcorreamos um pouco mais, flutuamos lentamente nos canais, admiramos as casas barco e resolvemos jantar perto da universidade. Desconhecemos os sabores, os cozinhados. Os canais estão cheios de pequenos barcos em festa; existem zonas de acumulação, num caos festivo, sabiamente resolvida. Descemos para o porto e mergulhamos no Festival da Navegação, no porto, nas novas zonas modernas conquistadas ao mar. São às centenas as embarcações, são milhares de pessoas. Sentimos nossas a Sagres e a Santa Maria Manuela (combinado não teria sido tão bom). Brincamos com os marinheiros. Fazem continência sorriem e continuam o seu trabalho. Andamos até que as pernas pedem descanso. Voltamos no nosso já conhecido vinte e quatro.
Sentados num típico café, tomamos o café da manhã, escutamos a cidade a acordar. Hoje o sol veio novamente visitar-nos; está bonito o dia, despimos os agasalhos, é de novo Verão. Hora de partir para o segundo destino. Apanhamos o comboio; a cidade fica suavemente para trás. Conseguimos beber um pouco da sua vida, do que tinha para nos dar. Daqui a pouco seremos novamente quatro, por alguns dias assim será. Encontrado o primogénito, com o transporte tratado, partimos para a estrada. Aportamos no novo poiso, um hotel numa terra desengraçada. O cansaço toma conta de nós após alguns quilómetros e visita curta à cidade medieval de Utrecht. Aqui as autoestradas são largas, gratuitas, ladeadas por verde até onde a vista alcança. Ficamos com a sensação que esconderam as montanhas; não é educado da parte deles mas torna as vistas abertas, os horizontes mais largos, o verde mais encantador - uma espécie de gigantes relvados. Somos guiados pela voz do orientador electrónico. A música de fundo é má mas hoje não há melhor. Estranhamos a comida; demasiado bom pão; demasiados molhos e especiarias (não tivessem eles colónias na Ásia faz poucos anos); o corpo queixa-se; é preciso continuar. Precisamos dum jantar calmo e duma noite de sono. Amanhã será outro dia.
A terra dos Delftos é bonita. Têm um encanto especial as suas ruelas, casas, lojas e igrejas. Em todas as terras encontrámos igrejas católicas, protestantes. Aqui existe a nova e a velha basílica além de outras que não visitámos. Chove a espaços. Saboreamos o antigo mais que passeamos. É tudo tão limpo, arrumado, bonitinho, que até mete nojo. É assim por toda a Holanda (se considerarmos Amesterdão, como Babilónia multicultural, um caso à parte). Descemos até Haia e passamos para o século vinte e um. Esperávamos uma pequena vila e temos à nossa frente mais uma capital, prédios modernos, até aos céus. Bom encontrar a zona histórica, velha e bela, efervescente de gentes e comércios e a deslumbrante Passage em estilo Belle Époque. Um contraste total com as torres de ferro e vidro ali logo ao lado. A rapariga com brinco de pérola olha para nós, pela primeira vez, no original. É bonito o museu, uma coleção de interessantes pinturas, num lindíssimo edifício com alguns séculos. Avançamos para Roterdão. A cidade esmaga em grandeza e altura. O belo porto está rodeado de altos blocos de escritórios: um contraste interessante, bem conseguido, entre novo e antigo. "Primeiro o teu pai", fica como frase do dia, saudade de outra companhia, marca de ascendência jamais esquecida. O regresso faz-se pelo meio dos campos: desta acertámos com o caminho e ficamos encantados; uma estreita estrada, com espaço para carros e bicicletas, no meio dos frescos campos.
Acordamos e partimos para mais uma jornada: viagem pela terra das tulipas, por estradas verdes, duma beleza que nos enche a alma, nos acalma o espírito, cura para todos os males. Aqui ainda parece ser tudo mais bonito, se tal é possível. Somos crianças avançando pelos campos, maravilhados com as ovelhas, carneiros (que o Manuel apelidou de Porcos), vacas, patos, gansos e cavalos. As estreitas estradas ladeadas de árvores enchem o olhar, maravilham-nos. Um outro hotel espera-nos no meio dum bosque. Percebemos de imediato que este jamais iremos esquecer, é especial. Deixamos as malas e partimos em direcção à costa, procurando o oceano. Somos surpreendidos por uma extensa praia de areia fina e mar calmo, cheia de banhistas. Medida a temperatura da água (não tão fria como esperávamos mas o suficiente para desaconselhar banhos de corpo inteiro), sentamo-nos para um almoço leve na esplanada: está calor; podia ser um almoço de verão numa qualquer praia nossa conhecida, de outras paragens mais a sul. Voltamos ao hotel para completar o check-in, conhecer os campos em redor e dar um pulo à vila. Jantamos na varanda do hotel, mergulhados em verde, num espaço algo colonial. Ouve-se água a correr e o cantar dos pássaros. São vários, cada um com o seu cantar.
Acordamos com promessa (cumprida) de pequeno-almoço à maneira. Está fresco mas o sol promete. Ouvimos vozes, nas outras varandas, chamando para o novo dia. Devidamente alimentados, partimos com rumo apontado a ocidente, ao oceano. Chegados ao primeiro destino, caminhamos à beira-mar ("aan zee" na língua deles). Está fresco mas sabe bem. As crianças brincam com a areia e conchas como em qualquer outra praia. O mar é um pouco mais cinzento, reflexo do céu menos azul. Sopra uma ligeira brisa que aconselha a um leve agasalho. Molhamos os pés no mar calmo (estranhamos a ausência de ondas), mais não dá para quem vive habituado a outras temperaturas. Existem curiosas pequenas casas, na praia, junto às dunas. Um parque de campismo de luxo, ao longo do areal, em pequenos bungalows. São simpáticos, cumprimentam quando passamos. Voltamos à estrada, para o interior. Procuramos a terra dos moinhos (Zaanse Schans). Uma reserva, tipo Disneylândia, de treze moinhos recuperados dos mil que existiram em tempos. É interessante e damos o tempo por bem passado. Mais uns poucos quilómetros e entramos em Alkmaar (soa a árabe), pequena terra, silenciosa, arrumadinha. Comemos tostas num jovem café. Dobramos a esquina e está instalada a feira. Um estranho contraste entre a ausência de ruído, nas primeiras ruas, e o caos pimba nas ocupadas pelos mais diversos divertimentos e rulotes. No que se refere às feiras conseguem bater-nos aos pontos em foleirada e em arrumação. Preferimos as ruas calmas e o silêncio. Afastamo-nos na direcção do mar, rumamos a Edgmond aan Zee. Uma típica vila de praia, como as que conhecemos nos mares do sul, incluindo um certo caos urbanístico.
Mais uma noite de sono, um apetitoso pequeno-almoço e, com pena, abandonamos o pequeno hotel no meio do bosque. Uma pérola que o acaso nos deu a conhecer. Partimos para a derradeira etapa, rumo a Groningen, a terra que a Princesa escolheu para estudar nos próximos meses. Temos duas centenas de quilómetros pela frente, uma navegação fácil através dos planos prados verdes deste belo país. Está frio novamente: muita sorte seria se assim não fosse; choveu durante a noite mas a manhã acordou com um sol tímido. Rodamos por estradas secundárias, pelo meio dos campos e das pequenas aldeias e vilas. Vive-se bem por estas paragens. É tudo muito igual mas belo: casas baixas, algumas com telhado de colmo, todas preparadas para a neve; campos verdes; canais de água esverdeada; vacas, cavalos e ovelhas. A estrada é paralela ao mar interior mas não o vemos; o dique protector esconde o azul para lá da barreira verde. O silêncio rodeia-me enquanto escrevo, vejo o mar e os omnipresentes aerogeradores. Um canto virado ao mar, lindíssimo. Agora estamos em cima do dique, da travessia, temos mar de ambos os lados, temos vista para o mar interior, cruzamos o estreito para o lado de lá, para Nordeste, por cima duma fina linha de terras conquistadas, entre o mar do norte e o mar interior. Chegados, procuramos o apartamento que nos acolherá nos próximos dias. É bonito: típica casa de altas janelas, desconexa, no centro da cidade, com espaço para todos. Apressamo-nos a sair; vamos visitar a residência onde ela vai viver nos próximos meses. Simpático o acolhimento; bonito o bairro; estranho o edifício (a primeira impressão é sempre assim). Comprarmos no Ikea o necessário para preencher o vazio do quarto e dar-lhe conforto - ganha cor e começa a ser dela; brevemente será um ninho confortável e pessoal. É o dia de todas as dúvidas e de algumas certezas, para ela e para nós. É o dia do “onde fui eu meter-me”, do “vou conseguir”, do “ela ficará bem aqui”. A preocupação e o cansaço tomam conta do humor, a refeição ajuda a relaxar (nunca um jantar no Ikea soube tão bem). Voltamos para descansar.
Choveu durante a noite; o sol espreita timidamente; faz frio. A cidade está a despertar; somente o mercado e a padaria estão abertos. Compramos o necessário e tomamos o pequeno-almoço rodeados de luz cinzenta, sabores e silêncio. O pão é bom, com queijo e fiambre ainda melhor. Daqui a pouco desceremos e encontraremos a cidade acordada, bem à nossa porta. Somos recebidos pelo, sempre presente, som metálico dos corvos. Chuvisca e faz sol (não sei se as bruxas comem pão mole por estas bandas, ainda não vi nenhuma). O vento sopra frio quando o sol se esconde; sabe bem (em Agosto) entrar nos espaços fechados; aconselha um agasalho. Aproximamo-nos da estação; daqui a pouco seremos novamente três; ele regressa mais cedo. A manhã faz-se esperando a hora da partida, conhecendo alguns dos cantos da cidade. Daqui a alguns dias seremos outros três em Lisboa; ela ficará conquistando o seu futuro. A tarde passa-se arrumando o futuro quarto dela: uns ligeiros pormenores e passa a ser um ninho aconchegante e personalizado, bem cheiroso; ficará bem aqui; o bom humor regressa. Todos queremos comida normal para repor o corpo. Procuramos um super e compramos o necessário para um simples mas delicioso jantar.
A presença das bicicletas altera as regras de trânsito e a mobilidade dos peões e dos carros. Se mandasse nisto tudo, proibia as bicicletas. Nunca sabemos o que nos espera; são silenciosas; não respeitam as regras de trânsito. Atravessamos campos imensos a procurar o mar; as barreiras impedem que o façamos; as estradas estão abaixo da linha de água. Vemos ovelhas, vacas e cavalos por todo o lado. Nunca tínhamos visto tantos cavalos soltos como aqui. O ar está empestado de estrume; choramos de tanto rir com piadas sobre o cheiro nauseabundo. Estacionamos perto da fortificação, destino primeiro neste dia. Uma bonita reconstrução duma antiga fortaleza junto da fronteira com a Alemanha. Atravessamos para o lado de lá; custa a perceber onde acaba um país e começa o outro. Somente um pequeno sinal azul com o nome rodeado de estrelas, uma ligeira alteração no estilo das casas e a diferente língua nas placas, marcam a leve diferença. Percorremos alguns quilómetros em estradas rurais e voltamos à Holanda. Rumamos a Delfzijl, pequena vila piscatória, no topo norte. Parece que o tempo sofreu algum tipo de distorção estranha neste lugar: a idade média dos habitantes é demasiado elevada. Sentamo-nos num café mas não conseguimos parar de rir, temos que nos levantar e voltar a Groningen.
E mais um dia e uma noite passaram. Quando sabe bem o tempo passa depressa. Vou escrevendo nas pausas. Agora é manhã, cedo. Soube bem o pequeno-almoço: café e pão fresco comprado ao cimo da rua; para rematar, um croissant acabadinho de fazer. Contínuo a estranhar o silêncio, estando num apartamento no centro da cidade. As altas janelas, muito mais altas que as nossas, deixam entrar a luz e ver o céu cinzento acima dos telhados. O dia está feio mas contamos que não chova - tem sido esta a norma. A noite foi de chuva forte: tem sido assim desde que chegámos ao norte; hoje foi mais intensa e prolongada. É o último dia completo que estamos com ela antes de partimos. Amanhã será a recepção na universidade e o regresso, a Lisboa; a Princesa fica neste seu novo reino, por alguns meses. Hoje temos que terminar uns poucos afazeres; aproveitar o tempo com ela. Procuramos um casaco adequado ao frio que aí vem. Escrevo à porta das lojas enquanto elas entram e saiem - o acto de escolher é misterioso, comandado por forças ocultas, imperceptíveis. Subimos ao último piso, procuramos as toiletes. É dos poucos países onde temos que pagar (30 cêntimos) para fazer chichi ou outra qualquer necessidade. Em uma semana, já nos levaram o suficiente para limparem as casas de banho por um ano. Continuamos a visita matinal às lojas. Um pouco provinciano mas alguma coisa havemos de encontrar numa das muitas lojas que há por aqui. Paramos para mais um café e uma tarte de maçã. O dia avança, mais pesaroso que os anteriores. Não sei o que escrever além da saudade que já está instalada. Vamos uma última vez à sua residência, tratamos das últimas contas e arrumações: a internet finalmente funciona (por cabo). Aqui para ter um passe temos que ter uma conta num banco holandês; para ter uma conta temos que ter residência. Os cartões Visa não são aceites na maioria das lojas; voltamos a ter dinheiro vivo na carteira - algo que ainda não percebemos mas que ela irá resolver. Encontrada uma solução de recurso avançamos para o jantar. É quando descobrimos que fecham as cozinhas às nove. Temos que improvisar e tornar este momento em algo de especial: um cachorro na feira e um hambúrguer no McDonalds salvam a noite.
Últimas horas. Acordamos cedo e tomamos o pequeno-almoço na padaria da esquina. Foi fácil chegar à universidade. Um espaço bonito; estamos rodeados por gentes de todo o mundo, de todas as raças, do sol nascente ao ocidente, parece que estão todos representados. Ela está contente, só quer que a espera acabe; nós estamos apreensivos. Tudo começa e acaba a horas. A cerimónia de boas-vindas foi bonita. A garganta aperta-se, os olhos ficam banhados. Temos de partir e ela tem que seguir os novos colegas. Um misto de orgulho, tristeza e alegria apodera-se de nós: algo de bom fizemos nesta vida; o futuro dela irá construir-se aqui, longe de nós, perto do mundo. Duzentos quilómetros separam-nos do aeroporto. Partimos, regressamos os dois (iremos ser três em Lisboa), ela ficará aqui adicionando uma etapa mais ao seu crescimento. No Natal voltaremos a estar juntos.
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