Quente Fiorde

Aqui a luz não nos quer largar: levanta-se cedo e deita-se tarde; tem medo do escuro ou acredita que dá saúde. Às quatro da manhã entra pela janela como se fosse meio-dia; à noite (se podemos assim dizer) não nos abandona antes das onze (e mesmo assim deixa uma réstea para que tudo esteja minimamente alumiado). Existem bebés e crianças por todo o lado; devem existir incentivos à natalidade ou um maior desejo de estar junto, de criar; talvez seja efeito da luz; porventura efeito do carinhoso e supreendente parque de estátuas, pequenas cenas familiares, intemporais, imortalizadas em pedra e bronze.
Esperávamos a primavera, fomos acolhidos pelo verão quente, meloso, mais seco que o nosso. Sentimos o peso no corpo, custa-nos progredir; procuramos as sombras e a brisa que vem do Fiorde. Este banha a cidade e as suas centenas de ilhas, esculpidas, milhares de anos atrás, pelo gelo. Faz-nos ter saudades de outras paragens, de outro verão, dos amigos, Lembra-nos a pequena aldeia piscatória na costa do Adriático. Aqui, numa aldeia capital, o mar é outro mas as águas são igualmente belas e calmas, ausentes de ondulação, lisas.
Temos sorrisos e simpatia por todo o lado; sentimos que nos abraçam sem lhes tocarmos: o total oposto do usual estereótipo. Sabe-nos bem sentirmo-nos bem nesta parte do mundo. Recordamos tempos em que pensávamos que isto não nos pertencia. Tudo parece fácil, acessível, simplificado, familiar, sendo diferente.
Elas são lindas de morrer (pena, certamente, gemerem, como avisou Lobo Antunes, numa, sua, estranha língua). Eles não estão mal, como directos descendentes dos bravos Vikings mas algo amansados pela modernidade.
Com o calor e a luz não é fácil dormir. Melhor ficamos numa fresca esplanada, bebendo uma cerveja, ouvindo as vozes estranhas que nos rodeiam: um ruído consolador.
Apanhamos o eléctrico para o outro lado da cidade. Saímos a meio percurso, junto da catedral. Acessas as velas, iluminado o caminho de regresso, mergulhamos, de mão dada, em paz, no bulício do centro da cidade. Temos magia na rua - o homem promete e escapa à camisa de forças, para espanto de todos.  Percorremos a cidade, como sempre o fazemos, mas, desta feita, a dois. Sabe bem, de quando em vez, sentirmos a falta dos nossos dois apêndices.
A cidade funde-se com o mar, a terra alarga-se para o Fiorde, o moderno namora o antigo, prolonga-o, dá-lhe um novo valor. Da nova estação central, mal colada com o majestoso edifício da velha gare, partimos, num rápido, qual bala silenciosa, para o aeroporto. Uma aerogare confusa, desencontrada da restante calma. As escalas cansam-nos, iniciam o processo de regresso à normalidade dos dias iguais. Dentro em breve voltaremos a partir, a rasgar os céus, a acordar em terras doutros reinos.

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