Cadernos

Sinto um prazer enorme quando tenho que estrear um caderno novo. Não tanto na sua compra - apesar de ser um privilégio, conquistado, poder fazê-lo sem ter que olhar e recuar perante o preço - mas no retirar do invólucro, no abrir da capa, na primeira vez (qual acto supremo) em que o lápis toca o papel. O mesmo se passa com os livros. É quase impulsivo, doentio: não tenho o tempo e a disponibilidade mental que precisaria para os ler todos; no entanto, continuo a comprá-los. Nada se compara ao cheiro e ao toque dum livro novo, ao suspense duma história por descobrir, às milhentas coisas que, ainda, podemos aprender.
Um caderno novo é um objecto sagrado: tem que ser tratado com o máximo respeito e carinho. Nas primeiras páginas, a letra é cuidada, os espaços são respeitados. Quando se aproximam as últimas, começo a tratá-los menos bem: escrevo com letra maior, mais intervalada, deixo mesmo alguns espaços inutilizados; discretamente, acelero o fim deste, aproximo o gozo de abrir outro. Para aumentar o deleite, compro somente cadernos fininhos, à semelhança das velhas sebentas da escola (nunca mais as vi) mas um pouco mais caros. O papel destes é mais grosso que o das primeiras. De tão fino que era rasgava-se, com a minha falta de jeito para escrever, com a força que exerço no papel.
Só uso lapiseira, a tinta borra-me os dedos. Nunca soube utilizar uma caneta de forma correcta. Tenho uma letra horrível: sempre o tive; culpa de ninguém. Se fossem os genes, teria a letra mais bela do mundo: a da minha mãe. Que inveja sempre tive da sua rubrica: uma obra de arte. Sempre que podia, abria muito bem os olhos e ali ficava, queixo colado à mesa castanha da sala (aquela quadrada que baloiçava), bem perto do papel, a tentar perceber como ela conseguia aquela magia: colocar a caneta sobre o papel e, muito levemente, criar aquele desenho, sempre igual, sempre belo. Ficava ali especado, inocentemente espantado, olhando em círculo - o papel, a caneta, os seus olhos verde água -, tentando perceber o segredo daquela magia - como conseguia ela, sem o menor esforço aparente, produzir tamanha beleza?
Minha mãe, enquanto professora, criava testes de matemática. Sim, criava obras de arte, pelo menos para os meus olhos. Arte no conteúdo e na forma. Não usava pincéis e tintas; utilizava papéis mágicos, com químicos roxos. A sua letra ficava marcada numa espécie de cera que depois servia de base para produzir as cópias. Escrevia por linhas direitas, sem qualquer suporte - somente o olhar e a mão. Imprimia números, símbolos e letras com aquela mesma caligrafia limpa, clara, redonda, divinal. Cada símbolo impresso, perfeito, quase inumano. Eu não consigo escrever três palavras em linha recta, muito menos em minúsculas e maiúsculas. Nunca consegui perceber ou copiar a sua técnica. Só agora entendo o porquê: naqueles gestos não havia técnica, somente existia arte, beleza, magia. Adorava aqueles momentos.
A magia só era maior quando juntos procurávamos soluções para equações e inequações. Lembro-me dela, colocando nos lábios a ponta da haste dos óculos, enquanto nos olhávamos, procurando a solução para aquele problema - qual o truque a aplicar para avançar mais um passo, qual o factor a simplificar, qual a raiz da equação. Não mordo a haste dos óculos, nem a ponta da lapiseira (compro em metal de propósito) mas faço o mesmo fixar dum ponto distante quando preciso de pensar. Por vezes dou-me a apoiar a mão no queixo, do mesmo modo que sempre a vi fazer.
Na altura, não tinha a menor consciência da dimensão da magia que ali se produzia, só agora, olhando os meus príncipes, posso imaginar a dor, que por vezes, estaria por detrás daquele sorriso. Havia sempre um sorriso, paixão, divertimento. Tudo o resto eu não alcançava. Só agora, escrevendo direitinho neste inodoro caderno electrónico, o poderei entender.

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