A grande aldeia

Recebeu-nos calma, espantosamente calma. Repousa no regaço dos seus mortos, lembrando-os a cada passo, na doce forma como reconstrói as suas artérias, na sóbria arquitectura, no silêncio dos quarteirões, no fluir dos seus habitantes em elegantes duas rodas. A festa das lojas e mercados convive com a homenagem aos que aqui viveram, aos que aqui outrora compraram nos agora ausentes comércios, em cinzas transformados, no quase vazio sonoro, respeitoso, dos restantes quarteirões e ruelas. A capital do grande império europeu é, afinal, uma grande aldeia, acolhedora, espaçosa.
Em terra de Protestantes Luteranos, a primeira que entramos é cristã. Acendemos uma vela junto de Nossa Senhora, celebramos a Páscoa. Voltamos à feira; por momentos mergulhamos na multidão: sabe bem.
Não conseguimos ficar indiferentes ao inesperado vazio dos banais estereótipos, a uma quase familiar desorganização, ao inacabado, à metrópole em construção, ao sorriso, às buzinas, aos curiosos semáforos.
As manhãs despertam bonitas; a luz, que pensávamos ausente, inunda os espaços; o azul do norte preenche o céu acima de nós, recorta as cúpulas, os baixos telhados; a textura da luz encanta, não nos é usual, acalma. Só o gélido ar não deixa esquecer onde estamos: a norte. A chuva visitiou-nos uma só vez, em pequenos gélidos flocos, caídos duma inesperada nuvem negra. Foi nuvem passageira, de pouca dura. Voltou o sol e a brisa gelada.
O som dos corvos, o seu chamar omnipresente, corta o vazio, os amplos espaços. Múltiplas línguas preenchem o espaço sonoro, não só a que esperávamos mas muitas outras, incluíndo a nossa, numa calorosa e colorida babel.
Derrubaram muros: o muro; fica a impressão que somente descansaram quando só o vazio restava, liberto, onde antes, afinal, nada existia, onde antes era terra de ninguém. Recriaram ai os espaços, preservando a memória em alguns poucos lugares: a custo; da forma mais bela e simples; querem esquecer, seguir em frente, relembrar quanto baste mas não mais, para que não mais se repita. Não conseguimos evitar a emoção, interrogar-nos, ter esperança que tudo não passe duma ilusão, que a realidade não tenha sido esta, que a loucura duns quantos não tenha sido mais que isso mesmo: loucura. As imagens da queda lembram a nossa: afinal todos ansiamos pela mesma liberdade. Resta uma linha, no mesmo lugar, somente visível para quem a procurar, para quem se interrogar sobre o que representa.
Assim como chegámos, partimos. O aeroporto é perto. Viajamos no agora nosso conhecido metro, procurando o nosso pássaro mecânico.
Deixamo-la para trás; foi bom conhecê-la.

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