Invisível, Deus e Coincidência
Era domingo, dia
de concerto e estava só na solidão da soalheira cozinha, perfumada a café,
repisando na sua desgraça. "Vai na mesma, já tratei de tudo",
disse-lhe o pai. "Vai e vai com ela", repetiu. Não podia ir -
esquecera-se de comprar bilhete -, nem podia ir com ela: o pai já estava mais
para lá, que para cá, quando ela o tinha abandonado; foi uma dor a menos que
retirou a este mundo. Seguindo a vontade paterna, levantou-se, vestiu o casaco
de bombazine beije sobre a camisola preta de gola alta, colocou os redondos
óculos e saiu. Resolveu ir de metro: eram só três estações. Estava sol e a
cidade permanecia adormecida.
Subiu, empurrou
as pesadas portas e entrou. Tinha sempre a sensação, algo incómoda, que todos
os velhos da cidade tinham descido ao mesmo lugar. Figuras saídas do mais
sombrio cinema europeu, personagens fantásticas dum documentário
pós-apocalíptico. Um oceano de naftalina, cabelos cinzentos e golas de pelo
falso; um barulho insuportável que não dispensava por nada deste mundo.
Estranhamente, domingo após domingo, sentia-se mais perto deles, fazendo parte
dessa confraria. Não tardaria, igualmente, estaria com o seu pai, novamente -
só não sabia onde, nem quando.
"O que é
aquilo? Não acredito!", gritou sem ser ouvido, enquanto, discreta e lentamente
avançava o pé direito até este encobrir o pequeno cartão azul retangular.
Procurou os atilhos dos sapatos, apertou um pouco melhor e levantou-se
envergonhado, vitorioso, incrédulo, com um pequeno bilhete azul escondido na
mão: fila H, cadeira 7. Olhou o céu, para lá do tecto e cerrou os olhos, uns
breves segundos, em agradecimento. Era bom demais para ser verdade, mas não era
perfeito. Avançou, entregou o pequeno cartão ao moço que estava na entrada e
encaminhou-se para o lugar conquistado momentos antes. Sentou-se, na penumbra,
sem reparar em nada para lá do mar de cadeiras, estantes e partituras que
inundavam o palco. “Olá”, disse-lhe ela, num acorde divinal, um morno sopro,
acariciando o seu ouvido esquerdo.
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