Alívio

A decisão estava tomada: seria ali e seria como Deus quisesse. Respirou fundo, ajeitou o velho companheiro cinzento e entrou. Fixaram o olhar, cumprimentaram-se com um simples aceno de cabeça, sentou-se decidido e aguardou em silêncio.
- Sabe porque o chamei?
Tal e qual como tinha previsto; ali estava a sua oportunidade: o canivete, cravado na coxa, lembrava-lhe porque estava ali; era agora ou nunca!
- Suspeito que tenha a ver com a proposta para a fábrica de anzóis - respondeu. Uma gota fria migrou da axila para o tronco; um tambor cegou-lhe os tímpanos; o cérebro adormeceu. O velho cadeirão cresceu enterrando a réstia de coragem.
- Pois, estou muito preocupado. O gerente ligou-me a dizer que a nossa proposta era o-bs-cena-men-te cara. Deu-nos uma última oportunidade.
- Imagino que quer que reveja a proposta? - respondeu em surdina, num grito mudo.
Procurou a virgem, a pequena estatueta entre a pasta das facturas e a das cobranças difíceis. Ao fim de 37 anos, conhecia cada palmo daquela pobre estante, cada mancha de humidade na parede, as manchas de ferrugem da sonora secretária de latão verde e tampo preto. Aquela figurinha de plástico sempre lhe tinha dado bons conselhos, sempre tinha sido a sua guardiã naqueles momentos.
– Na verdade, não sei se o poderei fazer – acrescentou, engolindo em seco.
- E porque razão não o poderá fazer? - balbuciou o chefe. Terá algo mais importante para tratar? – acrescentou, convictamente agastado.
Ficou um momento com o olhar no vazio, sentindo a pressão a sair-lhe dos ombros, pedindo a bênção da sua santinha, acariciando a pequena navalha.
- Sim, tenho: vou passear com o meu neto, mostrar-lhe como, com um simples canivete e um pequeno tronco, se pode construir uma flauta.

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