A dúvida do olhar

A chamada chegou a meio da madrugada; foram buscá-la a casa. Tem uma vaga ideia de como ali chegou, dos locais por onde passaram, de uma ou de outra palavra. Na entrada, uma pequena multidão flanqueia o alto portão; um rapaz imundo assoma-se da sua janela, mergulhando vidro adentro: dá um salto, acorda finalmente. O carro penetra a multidão, atravessando o muro e parando a umas dezenas de metros dum hangar cinzento e verde, sem janelas, plantado no meio dum campo de ervas secas.
"Não nos podemos aproximar mais sem protecção", anunciou o homem que viajara no lugar do morto ao mesmo tempo que abandonavam a viatura e se dirigiam para a tenda amarela da protecção civil. Lá dentro, uma dezena de homens era assistida por enfermeiros; fixou o olhar vazio dum deles: pálpebras inchadas, olhos amarelados, ausente. Já tinha estado em muitos cenários semelhantes; a intuição dizia-lhe que algo ali não encaixava. Avançou para a zona de transferência, arrastando consigo a dúvida daquele olhar.
Era-lhe cada vez mais penoso vestir o macacão branco: as articulações e a maldita tendinite no ombro esquerdo teimavam em lembrar-lhe o imparável avançar dos tempos. Colocaram a touca os óculos e as máscaras, saíram e avançaram decididos pela estrada de terra batida em direcção à única, aparente, entrada do hangar. A frescura da manhã aliviou, um pouco, a asfixia que, ultimamente, sentia quando tinha que usar aquela farpela plastificada. O sol, ainda baixo e tímido, ameaçava com mais um dia quente. Centenas de moscas atapetavam o chão em redor do edifício. Baixou-se – levantar-se seria o próximo problema -, assentou o seu pequeno laboratório ambulante e colocou algumas delas dentro dum tubo. O verde das asas somou-se à dúvida do olhar, adensando o pressentimento: já tinha visto algo parecido mas ali havia algo mais; um calafrio trespassou-lhe as vértebras.
Lá dentro, o quente tornou-se ainda mais penoso; doía-lhe a zona lombar; procurou dominar a ansiedade e arrefecer o corpo focando-se na tarefa que tinha pela frente; já não era a jovenzita que, três dezenas de anos atrás, corria, extasiada, para cada nova investigação. Centenas de galinhas inanimadas estavam dispersas por todo o pavilhão; outras, moribundas, arrastavam-se mudas, em completo silêncio. “Limitámos-nos a retirar os trabalhadores, tudo o resto está como o encontrámos”, informou o responsável pela operação. “Que teria o demónio, desta vez, arquitectado?”, pensou.
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