Aguardando
O calor derrete as palavras; uma corrente de letras, sem visível nexo, resvala pela folha - descende. Os trinta graus diluem a inexistente resina que as mantém juntas e quebra o invisível fio sob as palavras. Não há brisa que lhes baixe a temperatura, que as alivie deste estio anormal, que lhes devolva o tino: desanimam, isolam-se, destilam. Os tempos mais frescos estão, algures, a banhos - estamos desamparados: temos de nos resguardar; aguardar a chegada do Outono; proteger as letras e as palavras deste afrontamento. Recolho-as, entre folhas de papel, em tinteiros, para mais tarde as voltar a alinhar. Não as posso perder; fazem-me falta.
Inquieto-me: Noémia e Ignácio estão sentados a um canto - ombro contra ombro (a mais não se permitem; não permito por ora); não desgrudam; esperam; aguardam, tal como eu aguardo a revelação divina - talvez Morfeu ou Dionísio me voltem a guiar um destes dias.
Passo à condição de leitor: talvez uma pausa sabática, em que prescinda de tributos ou cobranças, me faça bem.
Lá longe, a norte, no mesmo meridiano, as estações são diferentes - está fresco -, permitem-lhe que crie o seu texto, que alinhe milhares de palavras. Recebo, a espaços, partes, capítulos: leio; procuro letras e palavras desatinadas; busco o sentido de tudo aquilo; anseio que me mande mais, que conclua. Dou-lhe conselhos, sobre coisas que sei; aprendo algumas outras; tento ajudar, incentivando. Está quase, a meta está à vista: urge tirar os alinhavos, cozer os remates, aparar as pontas. Está bonito e assenta bem no figurino. Logo que terminado, terá que estar capaz para desfilar na passarela, mostrar-se, receber os aplausos do júri e dos críticos: os nossos já os tem como certos.
O regresso está marcado para breve; virá para nos visitar, para estar aqui, até que o futuro o convoque para mais uma etapa.
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