No entanto aconteceu (3° Acto)

Atravessam o portão vermelho e a bafienta cortina preta; entram no escuro, somente alumiados por ínfimos pontos luminosos; perdidos, tacteiam até os olhos se encontrarem: fila G, lugares 3 e 5. Sentem o tecto ausente, azul escuro, salpicado de imaginários pontos cintilantes. Sentem a falta das cadeiras de madeira, com uma mofa almofada, das desdobráveis, da geral, e das poltronas de ferro, com costas curvas, assento de madeira, sem direito a mais confortos, na segunda plateia: um desconforto mágico, encantador; proporcional ao preço do ingresso, comprado através duma pequena cova, numa agora inexistente rotura na parede branca. O velho cinema sem tecto já não o era: em seu lugar, afastado do centro da vila, ergue-se um elegante neto do Apolo70: maior e mais lustroso que o Imaviz; claramente, mesmo renegado, um seu familiar directo. Um novo lugar de estar - um moderno fórum romano -, para passear, namorar e criar memórias, para quando este, também, já não o for.
Saíram da sala mal as letras brancas, sob fundo negro, começaram a rolar. Sem o dizerem, ambos sabiam que não tinham gostado; sequer tinham prestado grande atenção ao filme: o seu enredo, para já, era outro. Tinham combinado a ida ao cinema entre dois mergulhos de mar: para Noémia tinha sido um regresso, após muitos anos de abstinência friorenta; a anormal tepidez da água e o seu estado de quase hipnotismo permitiram-lhe esta liberdade. Estava maré vaza, uma praia enorme - como gostavam -, uma água envolvente, morna, um sol abrasador como já não sentiam faz muito. Antes, sempre de mãos entrelaçadas, tinham parado na pequena capela junto à fortaleza. Acenderam uma vela aos pés da Nossa Senhora de Guadalupe: precisavam de protecção para o frágil bem que lhes foi doado; precisavam duma boa mãe para cuidar dele.
Percorreram os corredores - repletos de lojas multicolores - e as várias escadas rolantes, até ao terraço. Dali, podiam ver o mar e as estrelas, podiam sentir novamente o leve calor do verão, a candura do velho cinema sem tecto: podiam mesmo rever a enorme tela branca, contornada a negro, onde as fitas aconteciam. Um verão quente, como sua manta, um aroma doce a figos e alfarroba. No écran, Scarlett Johanson repousa ao lado de Bill Murray, numa cama por desmanchar, num incaracterístico quarto de hotel: vestidos, simplesmente conversam; o provável não acontece; são a excepção que confirma uma qualquer regra não provada. Para Ignácio e Noémia a tradução é evidente: desde ontem coincidem em se encontrar, em não estarem perdidos, em não precisarem de legendas para os auxiliar a compreender esta, ainda, curta-metragem; este sim, é o seu filme, a sua praia. A presença tardia da lua faz-se notar num tipíco jogo japonês: a sombra duma árvore revela-se sobre as luzes daquela cidade percorrida por Scarlett. Ninguém se parece incomodar; é parte integrante daquela sala sem tecto; são os deuses e deusas a avisarem que estão despertos.
Ouve-se uma traineira ao longe. Uma gaivota poisa perto, dando sinal da sua presença; outras se seguirão, prontas para assistirem às cenas finais.

Comentários

Enviar um comentário