No entanto aconteceu (2°Acto)
A coincidência na chegada fê-los sorrir: ambos tomaram o amável gesto do outro como um simples cumprimento de boas vindas; não conseguiam aceitar que algo os tivesse impelido a chegarem no mesmo segundo. Noémia trazia um vestido vermelho de alças, ligeiramente cavado nas costas - realçava o ténue bronzeado - e umas sandálias de pano, um pouco fora de moda. O maravilhoso aroma de verão que Noémia emanava - aquela essência de banho estival e creme Nívea - acariciou todos sentidos de Ignácio. Ele também tinha vestido o seu melhor pólo, cor de salmão, e vestido calças bege claro: era um quarentão com um porte bonito, cultivado em alguns anos de natação universitária.
Foram encaminhados para uma mesa junto da janela, com vista para o mar: anoitecia; o sol cruzou o horizonte no preciso momento em que se sentaram. Escolheram um dourada grelhada para partilhar: excelente escolha segundo o cozinheiro. Era um tipíco restaurante moderno com ares de mediterrânico antigo: azul e branco, telas - de óbvias paisagens marítimas - pintadas por alguém que se julga artista; janelas brancas com portadas azul marinho; mesas com toalhas vermelhas e brancas. Estava-se bem; sentiam-se bem; bastavam-se.
Noémia sentia uma irritante moinha na garganta: uma minúscula palhinha insistia em desviar-lhe a atenção de Ignácio; acontecia-lhe sempre a meio das férias. Falou a Ignácio do pai e do consultório que mantinham em casa. Sempre que lhes doía a garganta, lá aparecia o bom gigante da bata branca que a obrigava a abrir bem a boca e a lançar um sonoro aaaaaahh gutural: qual Jane a fazer de Tarzan. Engoliu instintivamente, debalde: somente adensou a ligeira dor. Reviveu aqueles momentos: o pré-ocupar da mente com a certa reacção, a garganta deserta, a saliva que não existia, o pré-sentir do algodão árido a tocar as amígdalas, aquela vareta a aproximar-se da sua garganta, as amígdalas aguardando, expondo toda a sua intimidade, finalmente o contacto - o conter a reacção natural de vómito - e pronto; a vareta para dentro do tubo de vidro, bem vedada a tampa de cortiça para que os minúsculos monstros não tivessem qualquer caminho de fuga. Seguia-se a espera, o ficar em casa, a febre, os miminhos e a atenção total de todos, sem a mínima noção do impacto na vida dos pais: só agora o conseguia realizar. Sente saudades do xarope, com um sabor e texturas horríveis, que tanto gostava: tomado em colher de plástico que ia entranhando o sabor, dia após dia; vinha em pó, era preciso juntar água e obrigava o senhor da farmácia a um complexo, quase mágico, movimento de agitação do frasco. Riram-se; ambos tinham estas memórias.
Aperceberam-se que as mãos se tinham encontrado sobre a mesa: a direita dele servindo de berço à esquerda dela; os dedos curvados abrigando a outra.
- Que nos está a acontecer? - perguntou ele.
Não houve resposta; um simples encolher de ombros acompanhado de mais um sorriso foi suficiente para compreenderem que era coisa maior que a sua pobre compreensão cientifica.
Ele sempre foi o perfeito desajeitado com as mulheres; mesmo assim tem mais amigas que amigos. A arquitectura sempre foi a sua paixão, a quem se dedicou de corpo e alma. Nunca teve muito tempo, jeito ou paciência para paixonetas: não é que não sentisse o desejo; especialmente, tinha pena de não ter um filho. O primeiro casamento, preparado por uma tia, foi uma verdadeira desgraça. Depois do divórcio - uma benção dos céus - desligou completamente todos os sensores, entregando-se a um quase celibato: até que; até hoje.
Após o jantar percorreram as ancestrais vielas em direcção ao largo central onde uma quase multidão os esperava: era verão; havia barraquinhas vendendo memórias, doces e todo o tipo de artesanato. Partilharam um cone de máquina, de morango e baunilha: uma pequena tocha, espiralada, vermelha e creme; um retorno a uma infância comum; mais uma acha nas suas coincidências.
Levou-a a casa; desenlaçaram as mãos; deram um beijo na face; não precisaram combinar reencontro.
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