Nada, quiçá tudo

Parece-lhe que está sempre a escrever o mesmo texto; presente a aflição dos actores: o sair da sombra para a luz; das trevas para o iluminismo; do oculto para o exposto. Sabe que regressa; sim, o regresso sempre acontece: somente não tem por certo quando nem se estará cá para o testemunhar. É um recorrente retorno à primeira forma normal, ao quadrado da hipotenusa, à soma do quadrado dos catetos, ao prazer do exercício mental, à fórmula resolvente, à infância dos filhos, às brincadeiras na rua, às férias nas várias casas e lugares, ao tempo em que a falta de quase tudo aguçava a imaginação e criava indeléveis memórias. Na verdade não é um regresso mas um recomeçar constante; um novo ensaio a cada instante, progressivamente mais calmo, mais leve: menos vento, mais brisa; uma carícia quase imperceptível. Abandonou os cueiros faz muito - mesmo que nunca os tenha usado; vive um novo presente, reencontrado, próprio da sua renovada idade. Sabe que está próximo de mais uma bifurcação, novas veredas, outros rumos: aceita-os com serena inquietude, como a natural, agora percebida, sequência divina dos tempos. Recorda que só existe equivalência entre duas partes quando as soluções da primeira o são também para a segunda e que um produto só é nulo quando um dos factores se anula, absorvendo o outro.
(Estará a falar de quê? O Ignácio e a Noémia vão embora: passam para outro texto; fartaram-se, sentem-se a mais neste).
A avó sempre dizia: "muito bem se canta na Sé". Nunca soube a origem desta frase, nem sequer compreendeu bem o seu sentido: procura; não encontra definição; desiste; segue em frente. Aprendeu recentemente que as azeitonas têm cultivares: variedades que vão muito para lá do simples pretas ou verdes. Tal como nas uvas, as suas características próprias, permitem a criação de néctares distintos, azeites com paladares, cheiros e cores bem diferenciados.
Pensa no que liga tudo isto além do simples acto da escrita, do singelo prazer de brincar com as palavras? Nada, quiçá tudo.

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