Leve Montanha

Acaricia a cauda do pássaro; a mais não se atreve: receia os empurrões que tão bem conhece. Sente a vida em suspenso por um instante; dúvida da realidade; na verdade apercebe-se que suspensa já ela estava; talvez a pena esteja a ser revogada naquele momento. Tinha voltado, estava ali novamente, tinha atravessado a parede meeira, ouvido os chamamentos: alguns, bem reais, dos que sentiram a sua falta; outros, menos definidos, igualmente fortes impulsionadores da vontade, da coragem, do voltar.
Expulsa as mãos, o corpo obedece, seguindo-as, estirando, alongando, espreguiçando-se. Traz as mãos atrás (qual dançarina tailandesa) e o corpo recua procurando o equilíbrio, encaixando-se. Roda, rodam - toma consciência que não está só naquela cruzada -, baixa-se, um passo sem peso, sobe e volta a baixar. Não tem consciência de lembrar-se mas o corpo segue obediente às mãos, humildemente seguindo o mestre, numa mímica imperfeita dos companheiros daquela estranha mas bem conhecida coreografia.
É preciso levar o tigre à montanha, é preciso repelir o macaco que nos atormenta e voar, voar, subir em voo obliquo assustando a cegonha branca que abre as asas protegendo as suas crias.
- Anda cá cavalinho, deixa-me acariciar a tua crina, deixa-me ser criança novamente, leva-me a galope por estes campos fora. Lindo cavalo alado leva-me para as nuvens, o mais perto que te for permitido, onde lhes possa tocar, onde lhes possa sentir a silhueta, onde possa aprender a mover as mãos, imitando-as. Se estiver a pedir demais, diz-me que eu, pacientemente, espero por momento mais adequado.
Sente aquele afectuoso adormecimento, o sistema a desligar; quer adormecer, aproveitar aquela paz. Que bom seria recomeçar, voltar à fonte pura, à nascente, à inocência dos dias sem fim, renascer, resuscitar, lavar os tendões, a medula, a alma: voltar a ter a sua mão pequenina no regaço do calor da mão de sua mãe. Talvez, por uma curta eternidade, as entranhas o deixem viver em paz; talvez a maldita incerteza aflitiva queira tirar uns momentos para visitar a família, para relaxar, para cuidar do maldito macaco. - Estou perdido, pensava que o tínhamos repelido mas ele está ali novamente. Estas malditas cenas estão sempre a repetir-se, a desafiar a nossa concentração, a lembrar-nos que sorrir é fundamental.
Mais uma vez roça o joelho, aponta a mão aos céus, esmurra o ar, recua, dá mais um passo sem peso. Implora sentir o que tanto apregoam: o peso a escoar-se da pontinha dos dedos para a planta dos pés, o chão a empurrar, a anti-gravidade. Talvez tenha sentido, um dia sentirá.
- Alguém diga à bela dama que não me olhe assim; alguém lhe faça perceber que não será desta que vou ao tapete: agora não, por muito que me custe continuar. Ela que siga no seu baile, fazendo voar a lançadeira, fazendo voar os punhais, nos quatro cantos da sala, no tear, nesse desafio maior à coordenação e ao equilíbrio.
As mãos têm vontade própria, fogem, escapam-se, conduzem o corpo em mais uma rotação conjunta. - Ver-te-ei mais além, oh! galo dourado, equilibra-te numa só perna que eu não consigo. Mostra-me como o fazes, ajuda-me a procurar o balanço certo, o centro de gravidade, a colocar o peso exacto em cada mão.
Passou-se: agora é uma serpente, branca como cal, cheirando o ar com a língua pontiaguda, venenosa, procurando espetar os dentes, pequenas agulhas, bem no fundo daquele mar de paz e comunhão. Prepara o arco, dispara, mas nenhuma flecha atravessa o ar. A víbora segue o seu caminho; reaparecerá adiante para ajudar na subida até às sete estrelas, para os impelir a alcançar, uma vez mais, a cauda do pássaro, para garantir que a flor de lótus se atravesse no seu caminho.
Acabou: talvez, por uma ínfima fracção, tenham atingido a suprema cumeeira, o cume da leve montanha, o limite absoluto.
Sente o corpo, sente os corpos, sente a força do conjunto; sente o vazio interior.
A paz merece uma vénia.

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