Flores de renascer

Era nesses momentos de ausência partilhada que toda a vivência, em comum, fazia sentido: não tinham tido a alegria de criarem um filho. Aquele mal, até agora benigno, por estranho que seja, dava-lhes o ponto de amarração que nunca tinham conseguido gerar em conjunto. Rogério continuava a ser o mesmo homem, ligado à terra, guardião das suas origens; Joana sentia que já não era a mesma: por fora certamente; por dentro, queria acreditar que mantinha a mesma juventude mas sabia que algo tinha mudado. O que os levava aos momentos de paragem simultânea? Que força era aquela que os aproximava? Sempre comunicaram sem palavras, em silêncio: talvez por isso a solidariedade das mentes, também, naqueles momentos de suspensão do tempo e do espaço. O médico, sentindo que não dominava o mal, limitou- se aos conselhos de sempre - "Rogério precisa duma vida mais tranquila".
Olhou pela janela: Rogério cuidava das laranjeiras de sua infância. Tinham decidido comprar a casa dos seus avós: para ela era o regressar ao lugar da casa - a única que realmente podia ostentar aquela classificação; para ele, era o renascer num espaço ao qual sempre tinha pertencido - a terra vermelha; o barro; as árvores, os frutos e as flores de laranjeira. Através do vidro podia ver a curva, ao longe; por ora, somente a curva da estrada que levava ao moinho; a morte teria que esperar a sua vez.
Exausta, decidiu partir: saborear, mesmo sendo a última vez, o ir, o estar, o regressar nas memórias; fugir daquele ermo que sempre adorou, fugir de Rogério que, afinal, nunca conseguiu resgatar. Talvez a doença resolvesse também partir, talvez ficasse ali com Rogério.
Uma noite de muitos lenços, hesitações e decisões. Fechou a casa (a saudade virá depois), procurou-o uma última vez e entrou na estrada. O pranto esvaiu-se na primeira curva; um pacote não foi suficiente; sentiu uma vontade ainda maior de buscar a felicidade, algures, onde ainda não o sabia. No final da estrada espreitou-se no retrovisor procurando sinais de mudança: cedo demais; Rogério continuava bem colado, lá no fundo. A estrada passava, igual, ignorando Joana. Olhou em volta: o painel indicava a saída para o Cais de Almas; o carro virou, apanhou a estrada rente ao rio; mergulhou na paz da paisagem. Era ali que a nova felicidade se iniciava.
O rio puxava lentamente o barco, curva após curva, lenço após lenço, numa torrente cada vez menor, mais perto da nascente, do início. Estar no rio, à margem do mundo, fazia-lhe bem. As nuvens insistiam em retirar o sol a Joana mas isso pouco importava; mesmo aquelas lágrimas grossas, frias, que o céu lhe lançava, eram bem vindas.
Desembarcou, rio acima, num local estranho que sempre conheceu: rodeada de laranjeiras em flor, regadas por um sistema lágrima a lágrima.
Passaram meses, anos e Joana não mais tinha podido voltar a sentir a raridade da doença, o desligar, o instante de levitação; Rogério era somente um último episódio duma série antiga que jamais compraria em DVD ou que quereria rever na internet.
Gabriel era fruto desta fuga, da procura dum instante sem Rogério, da busca duma nesga temporal sem lapsos inexplicáveis. Aos dez dias passados de Julho, sentira, pela primeira vez, o calor daquele corpo franzino, minúsculo, aninhando-se contra o seu. Lembra-se claramente daquele momento, sete anos atrás, do não choro, do silêncio estranho, de Gabriel lhe ter sido sonegado rapidamente, de ser levado, uma primeira vez, para longe. Mais tarde habituou-se a estas urgências, a estes novos momentos de suspensão na procura duma resposta, do rezar para que não fosse desta, da bata branca que se aproximava, das canetas no bolso, do estetoscópio em torno do pescoço, do parece que resultou: "ele está melhor, logo, logo pode ir para casa"; momentos de alívio, de alguma paz reconquistada.
Gabriel cresceu - figura pequena e de aspecto frágil - em volta da doença mas, também, duma vontade imensa de ser gente, de viver. Era agora um rapaz, magro mas bonito, duma inteligência muito bela, duma capacidade enorme de fazer Joana feliz. A doença tinha acalmado e iria redimir-se completamente durante a juventude de Gabriel: o pecado tinha sido pago.
Nestes anos, Joana agarrou-se a muitos lenços, muitas lágrimas de laranjeira perfumadas, muitas dores, muita esperança. Muitas vezes recordou as pedras da sua infância, as dores que por lá deixou, a sua mãe. Apelou a todos os santos; procurou respostas para a fuga, para a gestação, para a doença. Porque era tantas vezes desafiada pelos deuses?
De tempos a tempos, pensava em Rogério, nos tempos em que tinham estado mais próximos: não mais o tinha visto; tinha substituído uma doença por outra, mais dolorosa esta, feita de sangue do seu sangue; os instantes de suspensão passaram a ser somente uma vaga recordação duma paixão árida, que já não o era; a força da esperança tinha sido transferida para outro ser bem mais importante, o seu filho.
Joana voltou a escrever, reentrou nas suas telas: algo lhe dizia que tinha deixado a curva para trás; esta, afinal, não seria a última dobra que percorreria nas veredas da vida. As análises confirmavam o que a sua renascida sede de vida provava; os medos e os receios diluíam-se num mar cada vez mais raso de lágrimas, mais cheio de laranjeiras bem floridas, plenas de sumarentos frutos.
(Esta lamechice com as laranjeiras está na altura de acabar. Vamos lá ver se a história encontra outros caminhos. Adiante...)
Gabriel pulava, como um cordeiro jovem, em seu redor; Joana tinha redescoberto o prazer das longas caminhadas pelos campos: quando as palavras se esgotavam e as telas permaneciam cálidas, Joana vestia as sapatilhas e evadia-se em busca do cansaço supremo, do vazio, dos passos sem peso, duma levitação inspiradora. Caminhava sem destino, deixava que os caminhos a levassem; voltava quando o corpo clamava por descanso, quando as pernas imploravam piedade. Gabriel acompanhava-a, incapaz de seguir os mesmos trilhos, sedento de queimar tudo aquilo que a doença lhe tinha sonegado em todos estes anos. Era agora um rapaz franzino mas belo, galanteador, qual cavaleiro descansando após a derradeira batalha, após as feridas curadas, preparando-se,  rebustecendo-se, pronto para mais uma guerra.
O verão deixava, finalmente, o seu cheiro no ar: não o sabia definir claramente mas não podia ignorar que aquilo que acariciava as suas narinas era o perfume característico do verão; um doce e quente mel balsâmico, reconfortante no abraço, inspirador. Adorava o inverno, o frio, a chuva mas era no verão que se sentia completa, perfeitamente encaixada na vida, bem com o mundo.
Sentia o impulso religioso, místico, espiritual como nunca antes o tinha sentido: percebia que Deus estava na Natureza, era omnipresente, tinha-se divertido a construir tudo aquilo, todas aquelas formas, cores e cheiros diferentes; tinha consciência plena que aquele instante de felicidade era somente mais um teste a que era sujeita pelos deuses e que nada assegurava que perduraria. Gabriel faria oito anos em breve. Este último ano tinha sido tão bom que era difícil de acreditar na avaliação de fé a que tinham estado sujeitos até então. Talvez tivesse terminado; tinha que estar curado; estaria?
Estavam sentados numa manta sobre a erva fresca, debaixo dum frondoso carvalho de copa redonda. Comiam empadas, arroz simples e salada fresca: o melhor repasto do mundo e arredores. Para tudo ser perfeito, faltava-lhe somente resolver uma questão: precisava reencontrar Telma, sua irmã.
As partilhas tinham sido o inicio da separação.
(Peço desculpa mas tenho que recomeçar a frase) As separações (assim está correcto) tinham sido o fim da partilha. Naquele dia (o tal que se apelida como das partilhas) separou-se da mãe, de bens, espaços e cheiros íntimos; separou-se da sua irmã: a mais dolorosa, injusta e incompreendida desunião (perceberão agora porque partilhas é sinónimo de "se pa ra ção"), marcou o início do período cinzento;  foi o ponto final em algo precioso - a infância; foi o fim da partilha com Telma. Depois seguiu-se aquilo que já sabem e um telefonema.
Dias depois, reencontraram-se, juntaram as mãos, reconciliaram-se e ficaram em silêncio: olhando-se, chorando, partilhando, sorrindo; procurando a anulação da sentença, do vazio, do afastamento a que se tinham condenado.
Foi Joana quem primeiro se atreveu a quebrar a abstinência de palavras: - Pouco tempo depois da nossa separação, reencontrei Rogério, certamente lembras-te dele. - Telma levantou as sobrancelhas, deixou entrever um sorriu e pensou: como lhe vou contar? - Durante algum tempo deixei a ilusão ser a barca dos meus sonhos, convencida que Rogério viajava pelos mesmos mares; afundei-me lentamente. Quando, após o acidente, Rogério fechou-se numa concha, começou a desatinar, eu própria sentia-me doente, a morrer, percebi que a hora da partida tinha chegado - pausou por uns segundos. - Soube, uns dias atrás, por uma amiga no Facebook, que o Rogério encontrou uma cura na milagrosa medicina russa. Espero que tenha recuperado mas não mais o quero ver; quero-lhe demasiado para voltar a penar novamente com ele.
Telma assimilava, absorvia, procurava preencher as memórias que não tinha, procurava uma saída, na linha da terapêutica russa, enquanto escutava.
- Depois fui abençoada com Gabriel: confesso que pequei, perdi a graça divina; suportei, com ele, a condenação durante anos. Sinto que, depois desta penitência, a minha alma está salva apesar do não arrependimento. Tu és mais um sinal que fui perdoada.
Telma finalmente falou e talvez fosse melhor não o ter feito. O convite saiu de rajada, qual flecha saíndo dum arco, rasgando o vento e atingindo, em milésimas de segundo, o seu alvo, em cheio. A ansiedade estava instalada e ainda nem sequer tinha aceite: percebeu, em segundos, a pré ocupação do seu corpo e mente por tudo aquilo que nem ao menos sabia se realmente aconteceria; o bloqueio já se instalara. Ainda nem sequer tinha aceite o convite e já a sua mente estava desvairada a pensar em coisas, pormenores, detalhes, reacções que bem conhecia e que Joana não controlava; sabia que eram coisas que não lembram ao menino Jesus mas que podia ela fazer? Ainda nem sequer tinha aceite o convite e já pré sentia a mente aprisionada, o corpo imobilizado, o estômago a mirrar, a cabeça a rodar. Era uma aflitiva incerteza que se apoderava dela sempre que quebrava a sua ladainha, sempre que tinha que sair do seu claustro, sempre que desafiava o seu rosário.
O último tiro de Telma - "quero-te no meu casamento mais o Gabriel. Não aceito recusas!" - era um beco com uma única saída: sim, mas sem dar uma certeza absoluta: manter, sempre, uma ínfima nesga por onde fugir, uma igual alternativa de recusar à última da hora - não vá o corpo fazer das suas e a mente não resistir. Era sempre assim, ainda nem sequer tinha aceite ou recusado, ainda nem sequer sabia qualquer pormenor da cerimónia, e já se debatia entre o desejo de ir, o querer fechar o ciclo renovador e a dificuldade de controlar o seu próprio corpo e mente.
O bicho do mato, com a idade, estava menos presente mas o convivio era algo que a continuava a incomodar: nunca sabia o que falar; sentia sempre que o que dizia não despertava interesse nos outros. Por vezes pensava que não a ouviam, que falava baixo ou que simplesmente as palavras somente existiam na sua cabeça, não se transformando em sons: conscientemente, seguia as conversas, pensava o que dizer, mexia os lábios, fazia passar ar pelas cordas vocais mas nada, aparentemente, chegava aos ouvidos dos outros.
O ermo era o seu território natural, a sua tela, a sua página em branco; adorava estar com amigos mas sempre quanto baste; precisava dos seus passeios, do seu vazio, do retiro meditativo. Precisava dormir, em paz; precisava recomeçar, voltar à fonte pura, à nascente, à inocência dos dias sem fim, renascer. Precisava resuscitar, lavar a alma, voltar a ter a sua mão pequenina no regaço do calor da mão de sua mãe; sentir a brisa embalando as pétalas nos seus sonhos de menina. Precisava vencer: deixar a ansiedade seguir a última curva da estrada.
No domingo, Gabriel a seu lado, mão na mão; olhava o altar, feliz; contemplava o bouquet de flores de laranjeira: sentia-se renascida.

(Texto criado ao longo do curso de Escrita Criativa lecionado pelo Pedro Chagas Freitas via Facebook)

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