O cheiro dos cravos

Era um local bonito, algo diferente: o verde negro dos ciprestes, o branco cálido dos muros, os campos de laranjeiras em redor, em baixo o mar, sim, o mar. Estranhamente, sentia a vida a impor-se naquele local. O olhar molhado, alimentando o azul.
Ao longe, entre dois ramos de laranjeira, podia vislumbrar a barca passando, transportando-o serenamente, através da derradeira porta, a caminho da eternidade.
Quando a lua o permitir, Joana sabe que há-de voltar, há-de segurar a maré, reter a barca e visitá-lo sempre que a saudade assim pedir.
Entra no comboio que a levaria à capital. Rio abaixo, lembra, de seu pai, o valor da liberdade, o cheiro dos cravos - flores, sempre as flores.
Todos os anos, no 25, as lágrimas de Joana descem a avenida da liberdade, de nome e de verdade sentida naqueles dias. Desta, sem pensar, entrou contra a corrente: subiu, em vez do tradicional escoar conjunto. Surfou a crista do desfile, enleou-se na espuma de cravos e refrões, deixou-se regressar, avenida abaixo, mergulhada no sentimento misto de revolta, pelo tempos actuais, e de alegria, por viver em liberdade. Volta sempre, impulsivamente, sente que o tem que fazer; limpa-lhe a alma da dor, enche-a de alegria: a dictomia quotidiana destes tempos.
As lágrimas de Joana descem, uma vez mais, aquela avenida que já foi sua e de seu pai. Joana é uma lágrima mais a descer para o rio, flores, cravos, apelos à liberdade. Maré de lágrimas escorrendo do marquês: alegria de poderem escorrer juntos, em liberdade; possuídos de algo maior, de cravo à lapela, formam um rio manso que nasce no marquês e desagua no Tejo, lá em baixo. Mais um refrão, mais uma canção; desta feita, a esperança ausente num silêncio contido a cada passo.
Enquanto houver força, logo que as laranjeiras florirem, descerá o rio, subirá entre colinas, será sempre mais uma lágrima, mais um sorriso, entre alguns, entre muitos.

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