O tempo que o tempo tem
“O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem; o tempo respondeu, ao tempo, que o tempo tem tanto tempo quanto tempo, o tempo tem”
Isto nāo está fácil; não vai dar: pensa, enquanto, em mais uma manhã cinzenta, aguarda pela filha. O que aconteceu? Ainda ontem estava na preguiça dos dias quentes e lentos de verão; um pequeno intervalo mais adiante, no frio e caloroso Natal; agora, somente uma ínfima fracção depois, está de novo mergulhado na rotina dos dias iguais - apesar de todos diferentes - onde tudo encaixa, sem que se tenha plena consciência do esforço empregue; dias onde o cansaço se acumula, para só se voltar a reduzir, algures, lá para o verão. É verdade, um dia destes - logo, logo - voltamos ao verão e depois, novamente, será Natal. Um ciclo, uma espiral continua - mas finita -, repetitiva: instantes; momentos; vivências; esperas; inquietudes; e paz. Em abono da verdade, pelo meio, ainda teremos o Carnaval, a Páscoa e todos os outros dias que, apesar de não terem um nome especifico, não são dias menores; na realidade são a maioria. Pensando melhor, talvez sejam mesmo menores, pelo menos em tamanho - porque os atravessamos num ápice, inconscientes, quase sempre, do tempo que passa - no entanto, nunca mais acabam.
Recorda o sabor do tempo em que os dias eram maiores; a idade onde, para tudo, havia tempo. O tempo em que se fartava das férias; onde as horas tinham de ser preenchidas dalguma forma. A delicia das horas, a entreter o tempo, aguardando o momento do jantar; tardes que pareciam não ter fim. O desafio de disfrutar cada momento; o fazer nada, sem que tal seja um desperdício de tempo; preguiçar, simplesmente, sem culpa, sem ser um crime; dedicar um fim-de-semana inteiro a saborear simplesmente cada momento e não sentir que perdeu um pedaço da própria existência. Porque sente, agora, que tem que espremer todos os minutos? Porque se alterou a noção do tempo? Porque perdeu a maravilhosa inconsciência do tempo que temos na infância; a eterna juventude? Talvez seja, esse mesmo, o maior desafio que a vida nos reserva: disfrutar da melhor forma do tempo que nos é entregue quando nascemos; quando o tique-taque soou pela primeira vez. Parece-lhe, agora, que, antes, o sabia fazer melhor, que foi perdendo essa capacidade de aproveitar cada minuto - nem que fosse para não fazer nada. Cada momento passou a terminar realmente num ápice. Somente na espera o tempo continua a dilata-se, a expandir-se; quase que volta para trás; cada minuto são horas.
Perdida a eternidade da juventude, a inconsciente inconsciência do tempo, resta-lhe assumir a sua finitude, de que existe um limite algures, ali, ao dobrar duma esquina. A sensação de eternidade acaba quando, pela primeira vez, tomamos consciência que temos a idade dos nossos pais - a idade em que tomámos consciência que tinhamos pais; acaba no momento em que começámos a compreender muito daquilo que não podiamos compreender antes: o momento em que realizamos o muito pelo que eles passaram. A eternidade termina, de vez, quando os nossos filhos atingem a idade em que os concebemos; quando temos que lhes entregar o testemunho; quando passam a ser os guardiões da eternidade. A eternidade acaba quando, por uma primeira vez, sentimos a morte por perto; quando ela toca um daqueles que tomávamos por eternos, um daqueles que nos faz uma falta do caraças; nem que seja para nos ajudarem a ocupar o tempo.
Acorda para a realidade, nua e crua: passaram mais cinco minutos, não deu por nada, o tempo voa. A miúda nunca mais se despacha: inquieta-se, vou acabar por chegar atrasado; vou ficar sem tempo, para ter tempo, para tomar o pequeno almoço, descansado, lendo o jornal, com tempo. Perde um segundo a reflectir: ainda ontem, ela sentava as fraldas na nossa cabeça, para acordarmos, e agora estou, aqui, à espera duma quase mulher para quem a eternidade ainda existe. Para ela, tempo é, realmente, como na definição: uma série ininterrupta e eterna de instantes; para ela o tempo tem, ainda, felizmente, uma outra dimensão. Tem ainda o tempo para ter o tempo, necessário, para saborear, correctamente, cada instante da vida.
É verdade que não há bem que sempre dure mas também é verdadeiro que não há mal que nunca acabe: ela, finalmente, está pronta para sair.
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