As luzes devem piscar

As ruas e as montras passam por ele, como sempre gostou, sem destino claro, ao sabor das multidões, dos espaços, dos apetites, dos cheiros. Quer escrever sobre o Natal mas não sabe como começar, por que ponta pegar, sabe apenas que a inspiração espera por ele algures, numa destas ruas, numa destas esquinas, onde ainda não alcançou. Procura memórias doutros Natais, uma ponta, mesmo pequena, dum fiozinho que possa puxar e desenrolar, em palavras, ao longo do texto. As iluminações de outrora não existem mais, os milhares de lâmpadas a piscar em múltiplas formas, foram substituídas por vazio ou por tubos assépticos que não piscam, a excitação da meninice foi substituída por uma calma inquietante, já não existem a Lanalgo, os Porfirios e a Casa Africana mas ainda tem o prazer do deambular ao acaso, das multidões a circularem por ele como formigas, do entrar e sair de pequenas lojas, do procurar e voltar a procurar, dos novos espaços da renovada Garret, do velho Chiado renascido das cinzas, do encontrar precisamente o que queríamos mesmo não sendo o que buscávamos.
Havia de tudo, somente na Baixa havia de tudo, somente lá existe tudo, mesmo o que nunca pensámos pudesse existir. Somente na Baixa existe o Natal da sua infância e existe o Natal de agora, existe a descoberta dum fino fio de memória, um ponto de união entre os Natais do antes e do depois, um qualquer momento impreciso, no tempo,
onde passou a existir um antes e um depois, ligados por este espaço, por este bairro no meio da cidade, na margem do rio da sua aldeia.
Era uma aventura, das grandes, um momento diferente, o comboio, o velho túnel, aquele cheiro que só os comboios tinham e que talvez ainda tenham, a deslumbrante estação do Rossio, agora toda limpinha, lindíssima, quase imaculada, o mergulhar na Baixa. O era uma vez um menino, pequenino e franzino, de mão dada com a mãe para não ser engolido pela multidão, todo inchado de satisfação, percorrendo a Baixa, fosse Natal ou outro tempo qualquer. Momentos de liberdade, de sonho acordado, de brilho nos olhos, de exaltação. As lojas fechavam à uma e ao sábado já não voltavam a abrir, a urgência de ir aqui e logo depois ali antes de encerrar. É uma vez ele próprio, percorrendo a mesma Baixa, anos depois, agora, à procura de palavras, sentindo uma diferente satisfação, sem aquela urgência mas com um mesmo prazer. Inquieta-se, que mais guarda do Natal da sua infância? Pouco, talvez muito?
Em casa o Pinheiro de Natal aguardava, um pinheiro verdadeiro, cheirando de forma inconfundível, comprado na rua, em Benfica. Por debaixo, numa base de musgo recolhido na Mata, o Presépio de figurinhas de barro, brancas e vermelhas, o castelinho cinzento, uma dezena de ovelhas, a vaca, o burro, algumas peças partidas, outras coladas, outras substituídas, de quando em vez, mas sempre de barro.
Agora, monta a Árvore, pequena, inodora mas decorada com mil e uma memórias em forma de figurinhas, constrói o Presépio, seguindo instruções precisas da sua princesa, como se fosse um incapaz em montagens de Natal, divertem-se, constroem novas memórias. Dezenas de luzinhas brancas fazem a Árvore piscar como deve ser, como sempre foi e devia ser.
Desce a Rua do Carmo, uma paragem para lanchar na nova Eric Kayser do Chiado, um saboroso palmier de canela com um café, pensa na Suíça, no Nicola e na Confeitaria Nacional, nos sabores desses lugares, de antes e de agora, descobre uma nova ponte, doce, na memória. Entra numa nuvem cinzenta, densa, lacrimeja, o perfume de castanha assada inunda-lhe o olfacto. Sai desta nuvem que sempre conheceu e prossegue viagem.
Descobre-se sentado à mesa com aqueles que fazem parte do seu Natal. Retomam a Ceia de Natal, iniciada muitos anos atrás e interrompida somente para terem tempo para tudo o que fazem quando não é Natal. Quase nas mesmas posições, talvez um pouco menos jovens a cada ano que passa,
mais descontraídos, divertem-se, partilham a refeição, contam histórias, trocam prendas, comungam na mesma alegria de estarem juntos, mais uma vez.
Dia de Natal, feriado agora como antes, senta-se em frente da televisao, já não há o obrigatório Natal dos Hospitais mas permanece o Circo, o Circo de Natal que toma conta do espaço e das sensações. Agora, como antes, surpreende-se e encanta-se com malabarismos e palhaços, volta a ser um menino em frente da televisão.
Escreve sobre o Natal, nunca antes se tinha atrevido a tal empreendimento, descobre o que já sabia, tem uma âncora na Baixa que nunca levantará ferros, encontra outros elos que unem o presente ao passado, este Natal aos anteriores, uma continuidade que julgava perdida. Está feliz por um momento, sobe o Rossio na direcção dos Restauradores, a bola de Natal, gigante, no meio da praça parece-lhe, afinal, uma bonita alternativa aos milhares de luzes a piscar. Existem luzes em muitos outros pontos do caminho, tem saudades das luzes de outrora, toscas, a piscar mas o Natal, talvez, nunca tenha estado tão presente como agora no seu coração.

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