A saudade é tramada
Olha, aí vêm eles, nunca faltam, faça chuva ou esteja um raro, solarengo e lindo dia de Outono, como hoje. Antes vinham só as duas, sempre a implicarem uma com a outra, depois juntou-se o fininho e depois o pequeno príncipe e a princesinha que vi irem crescendo e que agora andam algo desaparecidos. Gosto do fininho, gosto dele desde que o vi pela primeira vez, a trocar um olhar malandro com a minha princesa, ali junto do portão, fazem umas boas dezenas de anos. Depois começou a aparecer por aqui, de mão dada com ela, servindo, muitas vezes, como apaziguador da relação entre as duas. O rapaz tem jeito para as levar, a bem dizer, quando não é levado por elas. Faz bem mais que uma década, deixou, também, o seu velhote por aqui. Custou-me vê-lo, nesse dia, perdido, naquele fim de verão, fim de linha, só no meio duma multidão, numa estação terminal onde nunca antes tinha estado, disfarçando a dificuldade que tinha e talvez ainda tenha, em lidar com a situação. Não teve contacto com a morte, como deveria ser com todos, até bastante tarde. Foi quando tomou consciência que não somos eternos, que quem nos rodeia, quem amamos, não fica cá para sempre. Primeiro a Avózinha, companheira de sempre, depois a Avó Tó, fim duma era, do Algarve doutros tempos, das refeições com toda a família, duma paz quente que se perdeu e depois o pai. Agora, antes de me vir visitar, deixa sempre os três cravos vermelhos na gaveta do pai, volta a ler a pequena placa -avô, pai, companheiro, sempre - permanece uns momentos em silêncio, talvez trocando umas palavras com o pai, e vem para aqui ajudar na limpeza da minha gaveta. Cedo percebeu que este ritual era importante para a minha velhota, integrou-se nele e depois integrou nele o seu próprio ritual.
Aí vêm ela, cada vez mais velhota, os últimos anos bem marcados no andar e no rosto. A minha princesa, agora mais uma rainha mãe, ampara-lhe o andar conduzindo-a para aqui. Estão mais calmas mas o clima de permanente amor conflituoso está presente em cada gesto, em cada palavra, em cada passo. É, talvez, o resultado duma vida demasiado dura, vivida somente a duas, num espaço reduzido, sem uma outra presença apaziguadora. Fico contente do fininho e dos pequenos príncipes terem assumido o papel de guardiões deste difícil amor.
O dia de finados começa com uma ida, para apanhar a sogra, um regresso para as deixar junto da entrada e um périplo pelas redondezas para, com sorte e algum engenho, encontrar um lugar para estacionar. Desta correu bem, bastou entrar na primeira rua e zás estava um a sair. Quando chegou junto delas ainda estavam na compra das flores. Alguns passos e contribuiu para a Liga Portuguesa Contra o Câncro. Este ano a ajuda teve outro significado, o pauzinho teve mais dificuldade em empurrar as oferendas para baixo na velha lata amarela. O pequeno autocolante amarelo, colado na lapela do casaco, como se fosse um livre trânsito que permite franquear os mesmos portões onde, anos antes, se cruzaram e trocaram palavras de circunstância. Com excepção do dia solarengo e aprazível, da falta da habitual chuvinha molha parvos, o filme parece repetir-se de ano para ano. Na verdade o percurso é efectuado, cada vez, mais lentamente, apoiando-se na filha, com paragens mais prolongadas para ganhar folgo. Permite apreciar melhor os cenários e as personagens desta curta metragem, apreciar melhor os pormenores das campas, as famílias ciganas sempre presentes, as flores por todo o lado, o clima de tristeza alegre, um pouco de celebração, contemplação, dum profundo respeito e comunhão com a memória. Primeira paragem, três cravos, dois dedos de conversa, em silêncio, mais uns passos, um pequeno lanço de escadas e chegam aqui. O rodar, sempre difícil, da chave, tirar o pó aos santos e à foto, mudar os naperons, voltar a colocar tudo nos seus sítios e, após pormos, em silêncio, a conversa em dia, fecha-se a pequena porta de pedra e iniciam o regresso.
Antes o ritual de finados acabava com almoço na casa da velhota, uma deliciosa comunhão, muito latina, com cheiros, sabores e texturas como só a minha Georgina sabe fazer. Os cinco mal cabendo em tão exíguo espaço, em tantas e tão saborosas iguarias, nesta forma de estar junto mesmo com aqueles que já não estão.
A saudade é tramada e o fininho tem saudade desses momentos. Aos poucos descobriu que este ritual é uma forma de manter ligação a um pai que nunca compreendeu completamente mas que sempre amou e a um sogro que nunca conheceu mas que sempre esteve presente.
Aí vêm ela, cada vez mais velhota, os últimos anos bem marcados no andar e no rosto. A minha princesa, agora mais uma rainha mãe, ampara-lhe o andar conduzindo-a para aqui. Estão mais calmas mas o clima de permanente amor conflituoso está presente em cada gesto, em cada palavra, em cada passo. É, talvez, o resultado duma vida demasiado dura, vivida somente a duas, num espaço reduzido, sem uma outra presença apaziguadora. Fico contente do fininho e dos pequenos príncipes terem assumido o papel de guardiões deste difícil amor.
O dia de finados começa com uma ida, para apanhar a sogra, um regresso para as deixar junto da entrada e um périplo pelas redondezas para, com sorte e algum engenho, encontrar um lugar para estacionar. Desta correu bem, bastou entrar na primeira rua e zás estava um a sair. Quando chegou junto delas ainda estavam na compra das flores. Alguns passos e contribuiu para a Liga Portuguesa Contra o Câncro. Este ano a ajuda teve outro significado, o pauzinho teve mais dificuldade em empurrar as oferendas para baixo na velha lata amarela. O pequeno autocolante amarelo, colado na lapela do casaco, como se fosse um livre trânsito que permite franquear os mesmos portões onde, anos antes, se cruzaram e trocaram palavras de circunstância. Com excepção do dia solarengo e aprazível, da falta da habitual chuvinha molha parvos, o filme parece repetir-se de ano para ano. Na verdade o percurso é efectuado, cada vez, mais lentamente, apoiando-se na filha, com paragens mais prolongadas para ganhar folgo. Permite apreciar melhor os cenários e as personagens desta curta metragem, apreciar melhor os pormenores das campas, as famílias ciganas sempre presentes, as flores por todo o lado, o clima de tristeza alegre, um pouco de celebração, contemplação, dum profundo respeito e comunhão com a memória. Primeira paragem, três cravos, dois dedos de conversa, em silêncio, mais uns passos, um pequeno lanço de escadas e chegam aqui. O rodar, sempre difícil, da chave, tirar o pó aos santos e à foto, mudar os naperons, voltar a colocar tudo nos seus sítios e, após pormos, em silêncio, a conversa em dia, fecha-se a pequena porta de pedra e iniciam o regresso.
Antes o ritual de finados acabava com almoço na casa da velhota, uma deliciosa comunhão, muito latina, com cheiros, sabores e texturas como só a minha Georgina sabe fazer. Os cinco mal cabendo em tão exíguo espaço, em tantas e tão saborosas iguarias, nesta forma de estar junto mesmo com aqueles que já não estão.
A saudade é tramada e o fininho tem saudade desses momentos. Aos poucos descobriu que este ritual é uma forma de manter ligação a um pai que nunca compreendeu completamente mas que sempre amou e a um sogro que nunca conheceu mas que sempre esteve presente.
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