A marca indelével dum sonho

Olhámo-nos durante meses, durante meses ali estive, separada dele, daqueles olhos de criança, por aquele vidro, encontro após encontro, até perder a última coisa que se deve perder, até não acreditar que um dia aconteceria. Mas ele apareceu mais uma vez, certificou-se que eu ainda ali estava, sorriu, entrou, finalmente entrou, finalmente tinha consigo o salvo-conduto que lhe permitia aceder àqueles domínios, perguntou por mim, levaram-me para junto dele, entregou o que meses levou a juntar e partimos juntos numa mesma imensa alegria. Libertou-me do embrulho, da caixa, dos atilhos que me mantinham no lugar e finalmente pude sentir o calor daquelas mãozinhas que tantas vezes tinha visto no debrum da montra, segurando um fio de esperança reflectido no olhar. Senti-me livre como nunca tinha sido, voámos juntos por quilómetros de chão, adormecemos juntos, percorremos, em comunhão total, sonhos e imaginação.
A pequena mota estava ali e agora já não estava, melhor, já não o era, transfigurada num monte de peças retorcidas. A pequena mota estava ali, mil vezes sonhada, mil vezes imaginada em mil e uma brincadeiras. A pequena mota estava ali e agora já não o era, sonho espezinhado, amalgama de sentimentos reprimidos, procura de consolo num não faz mal, acontece, que nenhum consolo dá a quem tanto sonhou e agora não tem mais que um monte de frustrações até que novo sonho faça esquecer este. A injustiça de confirmar que pão quando cai, se for de pobre, cai sempre com a manteiga para baixo, melhor, que brinquedo muito sonhado, quando é pisado, é sempre pisado em cheio. Os porquês tantas vezes repetidos aos céus, aos deuses e santos da sua compreensão, o vazio duma nova espera até outro sonho ocupar o lugar desta tristeza. Tentou juntar os cacos, reconstruir o objecto dos seus sonhos, mas cedo percebeu que os sonhos colados não ficam perfeitos, servem somente para atenuar, um pouco, a tristeza e aumentar a amargura.
A noção do sonho conquistado, da paciência para o obter, da amargura daquilo que não se alcança ou que depois de alcançado se perde, acompanhou-o toda a vida. Anos mais tarde, já relegada esta e outras amarguras para a relatividade que o tempo impõe, prepara-se para receber o primeiro ordenado. Sonha que pode comprar este mundo e o outro, sente a mesma amargura, a mesma sensação de finidade, de que só podemos conquistar um sonho de cada vez, quando temos a sorte de o poder fazer, que os sonhos nunca acabam, que é bom ter sempre uns quantos de reserva, que amargura nos faz crescer mas que é melhor não contactar muito com ela e a afastar o mais depressa que for possível quando a encontramos.
A pequena mota já não é mais que uma recordação mas permanece como uma marca indelével dum sonho interrompido, dum acordar doloroso para a vida.

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