Um entre diferentes

Sabia que não haveria de ser muito diferente mas não esperava que fosse assim, que fosse ali. Sabia-me velho mas longe de tal me acontecer. O brilho e a transparência eram boas memórias, os riscos já me acompanhavam fazia algum tempo, eram marcas visíveis duma longa jornada, do desgaste dos anos, cada vinco contando uma parcela da minha história. Aqueles jovenzitos ali em cima, os azuis e os bordeaux, com aquela carapaça grossa, cheios de pirâmidezinhas no corpo, ainda não marcados pela lavagem, pelos químicos, os jactos de água e os maus tratos, também já perderam aquela bela patine que temos quando saímos da caixa, cheios de brilho, cheios de reflexos multi-colores. Eles estão outra vez na moda, eu, com este corpinho simples deslavado, pertencia aos descartáveis, ao grupo dos indiferenciados, um entre muitos diferentes que servem para tudo e para nada, a que ninguém dá valor. Estamos aqui e pronto, quando precisam, escolhem um, completamente ao acaso, normalmente o que está mais à mão e utilizam. Quando há festas, nos momentos especiais, deixam-nos a todos abandonados, substituindo-nos pelos fininhos e aperaltadinhos da cristaleira. Esses, só saiem quando há festa. Nessas ocasiões, ficamos no armário bebericando um pouco da alegria daqueles momentos, afogando, em copos vazios, a mágoa de sermos preteridos. Houve tempos em que tinha outra importância. Inesquecivel o dia em que nos tiraram da caixa, todos os seis igualmente bonitos, igualmente brilhantes, um pouco atordoados, procurando saber como seria a nova casa, ainda acordando dum sono longo no armazém. Nessa altura, eram os meninos ainda pequeninos, nós éramos os reis da cozinha. Em todas as refeições éramos os mais solicitados, todos queriam ter um copo novo e bonito. Depois, um a um, foram-se partindo, rachando, lascando, perdendo o brilho e fiquei, não sei bem porque sorte ou azar, só. Juntaram-me a outras peças únicas, com igual sorte, formando um grupo curioso de tão diferentes em alturas, formas e larguras, uma espécie de retiro para copos sós mas ainda úteis para alguma coisa.
Suportar as diferenças de temperatura tornou-se cada vez mais penalizador, o café a ferver e só depois o leite retemperador, água a ferver para o chá, todo o corpo a escaldar durante largos e dolorosos minutos, pareciam horas, sem fim à vista. Porque será que esta gente não bebe somente água da torneira e sumos sem gelo, seria mais saudável para eles e menos penalizador para estes pobres desgraçados. Nunca gostei de máquinas, houve umas quantas cá em casa, cada uma mais sofisticadinha, com mais mariquisses que a anterior mas todas provocando a mesma sensação de claustrofobia, atacando e degradando o meu corpo do mesmo modo. Gostava mesmo era de ser lavado à mão. Pena ter-se tornado cada vez mais raro, a esponja a passar no vidro, a água morninha, a espuma sedosa, o escorrer final, não há melhor. Melhor mesmo era em seguida, ser enxuto num pano de cozinha limpinho e macio mas tal era verdade somente quando o rei fazia anos. Ficar a escorrer no lavatório só gostava mesmo no verão, quando está frio é um castigo que alguns pagaram caro. Nunca esqueci o dia em que aquele pobre desgraçado rachou ao meio, horrível, mesmo ao meu lado, a diferença de temperatura foi-lhe fatal. Apesar de tudo tive sorte, salvo a pequena lasca na base, gozei de boa saúde, muito graças ao vidro de primeira qualidade. A lasca foi resultado duma queda, algo aparatosa, dum tabuleiro para o chão. Cai em pé, doeu, lasquei mas fiquei inteiro. Ainda era novo e estava um dia lindo, encheram-me de limonada e levaram-me para a varanda - como eu gostava de estar lá fora - no caminho tropeçaram e catapruz, tudo para o chão incluindo este pobre ser, ficou a minúscula fenda na base para memória futura. A monte no lavatório, no meio de pratos e talheres sujos, era a pior humilhação que me podiam fazer, um nojo, uma falta de respeito. Não entendo o que custa colocarem-nos direitinhos ao lado do lavatório, aguardando o momento da lavagem.
Sempre vivi entre esta cozinha e a sala, uma vez ou outra lá me levaram até um dos quartos ou, ainda mais raramente, até uma das varandas, que, como já referi, era a parte da casa que mais gostava, ar puro, sol, a luz, aquela paz. Gostava particularmente das refeições em família, gostava de ficar ali, no topo do prato, ligeiramente para a direita, observando e saboreando as conversas, saboreando a evolução dos temas e dos meninos ao longo dos anos. Como estão crescidos, como é bonito o seu brilho, a sua juventude, como é bonito ver como estão prontos para a vida.
Nunca prevemos como será mas jamais pensei que seria assim, não queria que fosse assim e muito menos ali, mas aconteceu. Não teve culpa, eu estava na trajectória do braço, a borda da mesa estava demasiado próxima, o tapete tinha deixado de cobrir aquele minúsculo ponto do duro chão. Multipliquei-me em mil pedaços, mil talvez seja exagero, mas foram os suficientes para deixar de ser quem era e passar somente a uma memória, o ultimo daqueles seis, o mais resistente. Ser uma memória é tudo o que peço mas entendo que, para um pobre servo da gleba, seja pedir um pouco demais.

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