Lá ficou mais uma vez

E aqui estamos nós, prontos para abandonar, mais uma vez, a nossa cria mais velha, à sua sorte, aqui, num local longe de tudo e de todos, desta vez, literalmente, no meio do campo. Sabíamos que seria assim, fomos nos preparando ao longo de meses, talvez nos estejamos a preparar desde aquele dia em que o deixámos, pequenino, de casaco verde, chucha na boca e a mesma expressão de interrogação, no Liceu Francês. Na última vez foi no meio da grande cidade, no coração da cidade luz, mas desta feita, tudo é verde à nossa volta, vários tons de verde, umas nuances de castanho outunal, algumas árvores de folha vermelha alaranjado. Ontem vimos ovelhas de cara e patas negras e pássaros, pretos e brancos, que não sabemos o nome, hoje um esquilo veio ao nosso encontro no caminho para o autocarro. O tipico céu cinzento, escuro, coberto duma ponta à outra, não ajuda mas, pelo menos, não chove, por enquanto. Uma brisa fria diz-nos que poderá chover, não tarda muito. O pior é a luz, acabámos de almoçar e parecem ser seis da tarde, dá sono, complica-nos a mente, ficamos algo desorientados. Ele está nervoso mas confiante, todos estamos algo apreensivos mas algo nos diz que tudo vai correr bem. Está a correr bem, como dizem por cá ele faz as coisas as a matter of course, de forma natural, as coisas vão acontecendo e os planetas vão-se alinhando. Tudo é novo, novos locais, novos hábitos, cheiros pouco habituais, a comida estranha, como é normal por estas paragens mas, na realidade, o fundamental não é assim tão diferente, somente muda a forma, mudam os hábitos, muda o ambiente em que estamos inseridos. Está frio para quem, ainda ontem, estava de chinelos e calções mas para eles, os locais, parece confortável, a nós entra-nos nos ossos e faz-nos encolher por dentro. Agasalhamo-nos, talvez um pouco mais do que seria necessário, o corpo pede que assim seja. Entrar nos edificios é reconfortante apesar de estarem, geralmente, demasiado aquecidos, numa lógica de frio seguido de muito quente, que nunca hei-de compreender totalmente mas que é habitual em toda a Europa do norte.
Ele já está inscrito, tem cartão de estudante, horário, sabe onde é a secretaria, já espreitou o edificio do seu curso, foi agora ter o primeiro encontro com o professor principal. De manhã tinhamos visitado a residência onde vai viver nos próximos meses, uma casa tipicamente inglesa que o deixou apreensivo. É só mais um teste, mais um desafio, um conjunto de desafios que o vão tornar mais forte, que o vão modificar, que lhe permitirão enfrentar desafios ainda maiores no futuro.
Todos são simpáticos, é uma festa à nossa volta, todos sorriem e esforçam-se por receber, da melhor forma, estes novos hóspedes. A alegria está marcada nos seus olhos, a preocupação nos gestos e nas hesitações, daqui a nada tudo isto lhes pertencerá também, serão parte integrante deste local, serão mais um entre muitos.
Hoje andámos num autocarro de dois andares, ontem disfrutámos dos maravilhosos táxis ingleses. Esta malta pensou, realmente, no melhor desenho para transportar pessoas, faz todo o sentido e simplifica a vida a todos, só não entendo porque insistem em circular do lado errado da estrada, um perigo! Em oposição à festa no campus, a cidade é duma calma estranha, uma autêntica cidade de provincia, domingo, cinco da tarde e está tudo fechado, a cidade recolheu-se, sobramos nós e alguns nativos de aspecto pouco convidativo para quem estranha os hábitos e as modas desta terra.
Jantamos num agradável restaurante italiano, os dois príncipes estão numa interessante conversa sobre a politica europeia das últimas décadas, ele explica-lhe o objectivo do curso, ela, surpreendentemente, como sempre nela, mantém a conversa viva, ainda ontem parecia não ter opinião e hoje mantém uma conversa sobre temas que nem eu domino. Está igualmente feliz pelo irmão, está feliz por ver desaparecer muitos dos seus receios sobre estudar numa universidade assim longe. Hoje, arreagaçou as mangas e limpou o quarto dele duma ponta à outra, fazendo desaparecer o ligeiro cheiro a mofo e a primeira impressão que tinha ficado. Sendo ela, ele consente, se formos nós é um acto hostil de intromissão rude, nos seus dominios. Eu consigo manter a distância mas a mãe é mãe e nada mais precisa ser dito. Estou a escrever e a sorrir, orgulhoso da cumplicidade dos meus principes e da dificuldade da mãe em ser aceite. Alguma coisa devemos ter feito bem para ter esta sorte, para sermos assim abençoados, sabe bem ver como cresceram e como se uniram, confirmando a minha teoria sobre o crescimento dos filhos: são seres extra-terrestes. Sempre que notamos que cresceram, que mudaram, na verdade foram trocados por outro fisicamente iguais mas mais evoluídos ou foram alvo duma actualização de software durante a noite. A teoria é um pouco mais complicada mas por ora fiquemos por aqui que a realidade é mais importante que teorias.
Estamos cansados de tanta coisa nova e de andar uns bons quilómetros dum lado para o outro. Descansamos, amanhã é o dia da despedida, faltam somente pequenas grandes coisas que ele já provou que conseguirá tratar sozinho, que ele quase exige tratar sózinho. Não tarda fará mais alguns amigos que se ajudarão ao longo deste ano. Não tarda não precisará de nós mas nós continuaremos a precisar dele.
Choveu durante a noite, não dei por nada, hoje está um dia bonito, está sol, de imediato sentimos outra energia. Felizmente não chove, a cidade parece outra, é segunda-feira, há movimento. Afinal, foi sol de pouca dura, o tempo nublado voltou, não fosse sol em demasia para peles tão cálidas, voltou a sensação que o dia começa a terminar quase antes de ter começado, que o anoitecer começa logo que a manhã acaba, que não existe tarde.
Foram pouco mais de quarenta e oito horas mas pareceram muito mais. Basta sairmos da nossa rotina e parece que o tempo estica mas não o suficiente para fazermos tudo o que queriamos e muito menos para podermos continuar aqui com ele. Despediu-se, foi à vida dele e nós partimos a caminho do aeroporto. Em breve estaremos de volta a casa e ele ao seu novo refúgio. Daqui a pouco voltaremos a estar todos juntos e sempre assim será.

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