Semicúpio


Sem razão lembrou-se do semicúpio. Sim, o semicúpio, aquele estranho objecto de latão verde que habitava o sotão da casa de Benfica. A memória tem destas coisas, não se consegue lembrar da maioria das coisas do passado e agora foi recordar-se daquele semicúpio, o velho e enferrujado banho de assento, a velha tina, unicamente apropriada para um banho que, nos dias de hoje, diríamos ser meio amanhado, incompleto, onde o corpo imerge somente das coxas à cintura, conforme indica o dicionário online da Porto Editora. O velho dicionário de papel repousa, em dois volumes, ali atrás, no topo da estante, sem que dele seja feito o uso apropriado. Está arrumado, naquele local, talvez para sempre, substituído por um pequeno quadrado a que damos o nome de aplicação.
Curioso recordar, sentir saudades, daquele sotão que, na juventude, o incomodava. Só quem o conheceu sabe o que era aquele espaço obscuro, de dificil acesso, frio e húmido no inverno, quente, pegajoso e baforento no verão. Nunca gostou dele, sempre tentou dar-lhe alguma ordem, sem nunca o conseguir e agora tem saudade desse lugar. Era um mar de tralha, em montes, sem qualquer sentido ou ordenação. Todo o tipo de coisas, livros velhos desmembrados, camas de ferro incompletas, jornais, móveis antigos, mesas, tábuas, ferragens, roupas, plásticos, malões, papéis de toda a espécie, fotos, quadros, molduras, partilhavam aquele espaço, jogados para ali um dia e ali ficando para sempre. O mesmo caos desordenado tomava conta dos armários, cómodas, despensas e prateleiras lá de casa. Todos eram seres vivos que explodiam sempre que, por má sorte ou ingenuidade, os importunávamos. Transbordavam, manifestavam-se ao mais pequeno toque, desequilibravam-se, deitavam fora parte das suas coisas quando alguém tinha o azar ou necessidade de os incomodar.
O semicúpio ocupava o seu lugar no sótão, submerso por inúmeros outros objectos que lhe retiravam a pouca dignidade que pudesse ter. Não se lembra de o ter visto noutro local mas recorda a curiosidade que sempre lhe despertou. Tinha ido ali parar junto com outros parceiros de infortúnio vindos da casa dos avós quando esta deixou dos poder acolher. Apareceram na casa, alguns com nomes estranhos, habituou-se à sua presença, canapés de palhinha, oratório, étagères, relógios de pêndulo e santos de igreja.
Hoje tem prazer em partilhar estas memórias mas na altura não era assim tão fácil partilhar aquele espaço. O Paulo, o grande Paulo, o seu amigo de infância que mais tarde voltaria a reencontrar, era dos poucos amigos que, naquele tempo, frequentava a casa. Ficam para sempre as noites passadas a jogar king, naquela maravilhosa mística do jogar para positivos e para negativos. Aquelas noites em que o convívio superava o desconforto do espaço e em que a rádio tinha um papel central. A essas horas já a meditação e fecho tinha escurecido o écran do velho caixote castanho, com botões de rodar e carregar, a que chamavam televisão. A essas horas entrava em cena o FM estéreo e as vozes graves e profundas dos locutores daquele tempo.
Hoje a casa é uma sombra daquele tempo, arrumada, ordenada, despejada de todas aquelas coisas, estranhamente parece que perdeu a sua identidade, ganhou uma outra que pouco lhe diz, onde se sente, um pouco, como um estranho. Como num teatro, o espaço é o mesmo mas o cenário e a peça são outros.
A sogra costuma dizer-lhe que o trabalho de casa nunca está feito. Na casa de Benfica realmente nunca estava feito, o termo mais apropriado seria nunca estava totalmente desfeito mas quase. Na verdade, o que nunca está feito, até ao dia em que partimos, é a arrumação das nossas memórias.

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