Em que estaria aquele homem a pensar?
Em que estaria aquele homem a pensar? Parecia completamente alheado, mergulhado nos seus próprios pensamentos, desligado do que se passava em seu redor. Não parecia estar a assimilar uma única palavra do que o outro, ao fundo, dizia. Seria só ele ou seriam todos os outros? Na verdade ele próprio também se tinha desligado e estava mergulhado nestes pensamentos. Pensou que era melhor concentrar-se u
m pouco. Fixou o olhar no outro, bem no fundo da sala, fazendo um esforço para se manter focado, afastando outros pensamentos e tentando absorver algo do que o outro dizia. Foi sol de pouca dura, o outro parecia que simplesmente mexia a boca, gesticulava mas, aparentemente, não produzia qualquer som. Era ele novamente, o som não chegava ao seu cérebro, não se conseguia concentrar, os seus pensamentos eram bem mais interessantes que aquele discurso. Estava, outra vez, distraído, escapava, com alguma frequência, para outros lugares, para universos paralelos, para lá dos limites físicos do corpo e do espaço envolvente. Gostava de disfrutar desta liberdade, desta capacidade humana de evadir-se, mantendo-se fisicamente no mesmo local.
Tinha fraca memória mas lembrava-se bem da dor, dor de alma, que sentiu naquele dia, muitos anos atrás. Sendo bom aluno tinha direito a sentar-se numa das carteiras da frente. Sim, ele era do tempo das carteiras duplas castanhas, uma só peça, com tampo inclinado, tinteiros de porcelana e uma estreita concavidade, longitudinal, perfeita para colocar a caneta em repouso. Naquele dia, teria, talvez, oito anos, a sua mente vagueava longe daquela sala de aula, estava completamente absorvido por outros pensamentos. Primeiro sentiu uma pancada no alto da pinha, depois, umas milésimas de segundo depois, percebeu que tinha sido atingido pela ponta do pequeno ponteiro que professora usava para apontar algo no enorme quadro de ardósia preta ou para dar umas réguadas aos alunos que se portavam mal. De imediato, a vergonha e a ofensa surgiram, no mesmo instante em que tomou consciência que passava a pertencer a esse grupo, humilhante, dos mal comportados. Como podia a sua professora humilhá-lo daquele modo? Sentia o peso duma turma inteira a olhar para ele, a troçar dele, mesmo que mal se tivesse notado o que tinha acontecido. Na realidade, somente ele e a professora tinham consciência do que se tinha passado, talvez o seu colega de carteira se tivesse apercebido, que vergonha, sentia-se violentado, não sabia para onde olhar, como reagir. Não se lembrava de muito mais, do tempo de escola, mas tinha bem presente a dor que tinha sentido naquele momento. Lembrava-se vagamente do seu colega de carteira, lembrava-se de ter tido um colega Afonso, com um problema num braço, talvez fosse esse o seu colega nessa altura, talvez estivesse a confundir tempos e colegas, a sua memória era assim mesmo, não lhe permitia recordar-se com exactidão de eventos antigos. Somente tinha gravados com alguma clareza aqueles instantes que o tinham marcado profundamente como aquele momento em que viu a sua pequena princesa pela primeira vez. Nunca mais esqueceu o cheiro, a emoção, aquele lindíssimo rebento de cara esborrachada, aquele beijo partilhado com a mãe ainda abalada.
Voltou à realidade, agora o homem estava claramente a dormitar, a cabeça oscilava ligeiramente para a frente e para trás, por instantes tombava e voltava à posição vertical, as pálpebras pareciam que tinham uma tonelada. Tinha que encontrar um meio de o avisar, para o trazer novamente para a terra. Tossiu e arrastou a cadeira, um ou dois centímetros, produzindo um pequeno silvo irritante. Resultou mas no sentido completamente oposto ao que tinha planeado. Dezenas de olhos viraram-se para ele e, no mesmo movimento, seguindo o seu próprio olhar, fixaram-se no homem dormitando. Como sentindo o peso de todos aqueles olhares, o homem, despertou. Todos recolheram, rapidamente, os olhares, mas mantendo o homem em observação, discreta, pelo canto dos olhos. Sorrisos e trocas de olhares eram visíveis. O homem não parecia incomodado apesar de notar-se um ligeiro enrubescer das faces. Voltou à sua posição inicial mantendo o mesmo olhar distante, a mesma desatenção aparente. Tudo voltava à primeira forma normal. Ele precisava esforçar-se para se concentrar novamente, a conferência parecia que não tinha fim.
Tinha fraca memória mas lembrava-se bem da dor, dor de alma, que sentiu naquele dia, muitos anos atrás. Sendo bom aluno tinha direito a sentar-se numa das carteiras da frente. Sim, ele era do tempo das carteiras duplas castanhas, uma só peça, com tampo inclinado, tinteiros de porcelana e uma estreita concavidade, longitudinal, perfeita para colocar a caneta em repouso. Naquele dia, teria, talvez, oito anos, a sua mente vagueava longe daquela sala de aula, estava completamente absorvido por outros pensamentos. Primeiro sentiu uma pancada no alto da pinha, depois, umas milésimas de segundo depois, percebeu que tinha sido atingido pela ponta do pequeno ponteiro que professora usava para apontar algo no enorme quadro de ardósia preta ou para dar umas réguadas aos alunos que se portavam mal. De imediato, a vergonha e a ofensa surgiram, no mesmo instante em que tomou consciência que passava a pertencer a esse grupo, humilhante, dos mal comportados. Como podia a sua professora humilhá-lo daquele modo? Sentia o peso duma turma inteira a olhar para ele, a troçar dele, mesmo que mal se tivesse notado o que tinha acontecido. Na realidade, somente ele e a professora tinham consciência do que se tinha passado, talvez o seu colega de carteira se tivesse apercebido, que vergonha, sentia-se violentado, não sabia para onde olhar, como reagir. Não se lembrava de muito mais, do tempo de escola, mas tinha bem presente a dor que tinha sentido naquele momento. Lembrava-se vagamente do seu colega de carteira, lembrava-se de ter tido um colega Afonso, com um problema num braço, talvez fosse esse o seu colega nessa altura, talvez estivesse a confundir tempos e colegas, a sua memória era assim mesmo, não lhe permitia recordar-se com exactidão de eventos antigos. Somente tinha gravados com alguma clareza aqueles instantes que o tinham marcado profundamente como aquele momento em que viu a sua pequena princesa pela primeira vez. Nunca mais esqueceu o cheiro, a emoção, aquele lindíssimo rebento de cara esborrachada, aquele beijo partilhado com a mãe ainda abalada.
Voltou à realidade, agora o homem estava claramente a dormitar, a cabeça oscilava ligeiramente para a frente e para trás, por instantes tombava e voltava à posição vertical, as pálpebras pareciam que tinham uma tonelada. Tinha que encontrar um meio de o avisar, para o trazer novamente para a terra. Tossiu e arrastou a cadeira, um ou dois centímetros, produzindo um pequeno silvo irritante. Resultou mas no sentido completamente oposto ao que tinha planeado. Dezenas de olhos viraram-se para ele e, no mesmo movimento, seguindo o seu próprio olhar, fixaram-se no homem dormitando. Como sentindo o peso de todos aqueles olhares, o homem, despertou. Todos recolheram, rapidamente, os olhares, mas mantendo o homem em observação, discreta, pelo canto dos olhos. Sorrisos e trocas de olhares eram visíveis. O homem não parecia incomodado apesar de notar-se um ligeiro enrubescer das faces. Voltou à sua posição inicial mantendo o mesmo olhar distante, a mesma desatenção aparente. Tudo voltava à primeira forma normal. Ele precisava esforçar-se para se concentrar novamente, a conferência parecia que não tinha fim.
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