tag:blogger.com,1999:blog-15874716483429712122024-03-14T15:47:50.208+00:00O Lugar da Casa e Outros SonhosO Lugar da Casa é a terra dos nossos sonhos,
um sonho de longa data que um dia destes irá torna-se realidadeAlexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.comBlogger242125tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-54930966040136233882024-02-25T10:43:00.001+00:002024-02-25T10:43:00.419+00:00E agora?<div>Algo mudou; já não sou quem era. Anos passados (cinquenta em liberdade, após nove que, felizmente, não tenho memória), dobrei uma qualquer esquina, desviei-me, entrei num novo viver. A essência pouco mudou; do embrulho não posso dizer o mesmo. Terei, quem sabe, finalmente amadurecido, abandonado o ser verde, inocente. O mais certo é ser somente a erosão dos tempos que voam, variações de nós mesmos, moldadas pelo tempo. Olho o espelho d’água que reflete um outro ser, torcido pelo vento, pelo imperceptível ondular, pelo cinzento do céu. </div><div>Há gaivotas no lago, longe do rio, afastadas do mar. Há gaivotas em terra.</div><div>E agora? </div><div>A chuva regressa; miudinha, molha parvos. Sinto o desconforto do pano molhado; da humidade; da brisa fria. Procuro abrigo; o claustro reconforta. Desejam-me um bom dia; sorriem-me; sorrio. O sol rasga as nuvens, aquece o ar, envolve o corpo, limpa a mente, abre o horizonte, deixa ver para lá da cortina.</div><div>E agora? </div><div>Agora, levantas-te e andas; o caminho faz-se caminhando. Sempre assim foi; sempre assim será.</div>Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-25422932384856039322024-02-19T23:10:00.000+00:002024-02-19T23:10:01.523+00:00Cheiro<div>Apercebo-me que a pandemia tinha um cheiro, deixou uma memória olfativa. Hoje lembrei-me dela, cheirei-a. Todos teremos essa memória, reconheceremos o seu indelével odor, perceptível, omnipresente, para sempre na nossa lembrança. Quatro anos passaram do seu início. Como agora, era quase Primavera, mas o cheiro sobrepôs-se ao perfume das flores, ao quente do sol nas narinas, a tudo. Afundámo-nos nesse cheiro, na suspensão do tempo, num mundo em pausa, sem guerras, entregue a um só combate, esquecido de todos os outros. </div><div>Ainda não tinha acabado e já tínhamos regressado ao fel do ódio e da morte, às guerras. Longe, mas vêmo-las acontecer, todos os dias. Não são aqui, mas existem, não mais acabam. Para nós, felizmente, não têm cheiro e esperamos que não venham a ter. As memórias serão as que formarmos com o gosto amargo da impotência, da frustração, da raiva que refreamos, do eco do grito daqueles que morrem pela liberdade.</div><div>Que o amor nos salve, canta o poeta. Custa acreditar com tanto malcheiroso nas rédeas do mundo. Uma coisa é certa: quem se lembra do cheiro da guerra, não o quer recordar, certamente luta pela liberdade. O problema é a falta de memória, um desejo parvo de sentir-lhe o nauseabundo cheiro. Das duas, uma: ou os deuses estão desiludidos e não sabem o que fazer; ou os deuses não são bem o que queremos que sejam. </div><div>Fecho o frasco. O álcool-gel fica a pairar no ar, aviva a memória, lentamente evapora-se das minhas mãos vazias.</div>Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-66909593389389855222024-02-03T18:10:00.000+00:002024-02-03T18:10:14.658+00:00As comadres<div>As comadres adoçam-me a boca, barram-me o pão a cada manhã, estão presentes a cada novo dia, vivem em frascos de doce vivo, em vividas fatias de marmelada. Enquanto o mundo vai de mal a pior, as minhas manhãs são adoçadas pelas mãos das mães da minha nora e do meu genro. Lá fora, está tudo doido e não há sinal que a coisa vá melhorar nos próximos tempos. Andam todos com passo apressado, em busca do vazio, dando ares de importantes. Sabemos que em casa que não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. Talvez seja o caso, mas os fornos estão ligados e na máxima potência, mas sem pão. Produzem ódio, máquinas infernais de destruição maciça.</div><div>Falta um pouco de doce no pão de muita gente, uns porque têm fome, outros porque precisam de adoçar as suas vidas, acalmar as raivas, resignarem-se ao facto que são simples mortais e que nada melhor existe que uma fatia de bom pão barrada com doce, cozinhado com amor, misturado a pensar naqueles que o irão provar, delicioso. <span style="font-size: 12pt; -webkit-text-size-adjust: 100%; display: inline !important;">Todos temos sombras e luzes, lados amargos, outros doces, mas somos todos passageiros desta barca que parece estar preste a afundar-se. </span><span style="font-size: 12pt; -webkit-text-size-adjust: 100%; display: inline !important;">Falta doce. </span></div><div><span style="font-size: 12pt; -webkit-text-size-adjust: 100%; display: inline !important;">A gata olha-me, espera uma festa, um pouco mais do seu doce alimento. O mais certo é não querer mais que um pouco de atenção, um tempo a meu lado, companhia. Os dias repetem-se. </span></div><div><span style="font-size: 12pt; -webkit-text-size-adjust: 100%; display: inline !important;">A regra é não saber o amanhã, aceitar cada jornada como uma cópia, pior, da anterior, ter esperança que um dia, um doce dia, a paz seja notícia, os soldados dispam as fardas, regressem a casa e voltem a comer pão com marmelada a cada nova manhã olhando o azul do céu por uma qualquer janela.</span></div><div><br></div>Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-50376764478655203022023-12-17T15:28:00.002+00:002023-12-17T15:39:16.664+00:00A Boda (Dezembro 9, 2023)<p>Corre, rapariga, corre; corre o que quiseres, mas deixa-me caminhar a teu lado. </p><p>Vou atrás da tua seta, rapaz, na mira do teu olhar, sigo o teu alvo, os heróis dos teus sonhos, dos mundos que tens para jogar, das cartas que tens para lançar.</p><p>Corre, rapariga, corre, mostra-me os lugares por onde andas, os povos que tanto amas, as lutas que travas, as terras da Ásia, as florestas das Américas, as estepes da tua querida África, todo planeta. </p><p>Vem comigo rapaz, dança comigo esta dança, dá-me a tua mão, acompanha-me nesta vereda, sobe esta montanha, atravessa este vale, amansa as águas onde navegamos, faz-me sorrir, bebe comigo uma cerveja. </p><p>Corre, rapariga, corre, tira os pés do chão, eleva a tua leveza, leva-me contigo, voa comigo.</p><p>Aponta a sul, rapaz, mostra-me o Lugar da Casa, que já é meu, o sol, as falésias junto ao oceano, o peixe e o vinho, o teu sabor, as tuas gentes, a tua língua, o teu falar. </p><p>Corre rapariga, corre, afina a bússola, aponta a norte, para o doce frio, para a nossa casa; deixa-me sentir a chuva, abraçar os teus, que meus já são, ouvir os pássaros, olhar o profundo verde, sentir-me no centro do mundo.</p><p>Traz os amigos rapaz, todos os que encontrares, porque todos são teus amigos, pois com todos queres estar, com todos desejas falar, seja qual for a sua língua, seja qual for o seu trajar. A todos queres dar aprovar os teus manjares, os segredos, a mão que soubestes preservar. </p><p>Corre, rapariga, corre, que eu aqui sempre hei-de estar. </p><p>bem, rapaz, que precisas do teu canto, do teu vagar, do silêncio que te consola, da meditação que te embala, do sonho que está para chegar.</p><p><br /></p><p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh7UpBz5ihupqubUhxeMATHPYu7BD9HPBhHoiTBUjxceGsibEyJagpmev3snCIYZv3blbxt56wB06lTSpJjIfNXNn2NxaSTiiYohwwnwBJgUDQEYJqCLxB_QLpZ2OsqEUn9aO6OjUWSTgN_MJhcoft-MEwpk3975LxkhX0AqIjx0I_JwsaqUa8rw9ob7t5G" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="3311" data-original-width="2392" height="634" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh7UpBz5ihupqubUhxeMATHPYu7BD9HPBhHoiTBUjxceGsibEyJagpmev3snCIYZv3blbxt56wB06lTSpJjIfNXNn2NxaSTiiYohwwnwBJgUDQEYJqCLxB_QLpZ2OsqEUn9aO6OjUWSTgN_MJhcoft-MEwpk3975LxkhX0AqIjx0I_JwsaqUa8rw9ob7t5G=w458-h634" width="458" /></a></div><br /><div>Cours, gamine, cours; cours tant que tu veux, mais laisse-moi marcher à tes côtés.</div><div><br /></div><div>Je suivrai ton tir, gamin, dans l’horizon de ton regard, je suivrai ta cible, les héros de tes rêves, les mondes dans lesquels tu joues, les cartes que tu dois placer.</div><div><br /></div><div>Cours, gamine, cours, montre-moi les endroits où tu as été, les peuples que tu aimes tant, les combats que tu mènes, les terres d'Asie, les forêts des Amériques, la brousse de ton Afrique bien-aimée, la planète entière. </div><div><br /></div><div>Viens avec moi, gamin, danse avec moi, donne-moi la main, accompagne-moi sur ce chemin, escalade cette montagne, traverse cette vallée, apaise les eaux où nous naviguons, fais-moi sourire, bois une bière avec moi. </div><div><br /></div><div>Cours, gamine, cours, décolle tes pieds du sol, prends de la hauteur, emmène-moi avec toi, vole avec moi.</div><div><br /></div><div>Indique-moi le sud, gamin, montre-moi l'emplacement de ta maison, qui est déjà la mienne, le soleil, les falaises au bord de l'océan, le poisson et le vin, tes goûts, ton peuple, ta langue, tes mots. </div><div><br /></div><div>Cours, gamine, cours, règle ta boussole, pointe-la vers le nord, vers le froid doux, vers notre maison ; laisse-moi sentir la pluie, étreindre les tiens, qui sont aussi les miens, écouter les oiseaux, regarder le vert profond, me sentir au centre du monde. </div><div><br /></div><div>Amène tes amis, gamin, et tous ceux que tu rencontres, parce que tout le monde est ton ami, parce que tu veux être avec tout le monde, tu veux parler à tout le monde, quelle que soit leur langue, quel que soit leurs tenues. Tu veux faire goûter à tout le monde tes mets, tes secrets et l'habileté que tu as su garder. </div><div><br /></div><div>Cours, gamine, cours, car je serai toujours là. </div><div><br /></div><div>Je sais bien, gamin, que tu as besoin de ton coin, de tes errances, du silence qui te réconforte, de la méditation qui te berce, du rêve qui va venir.</div><div><br /></div><div><p></p></div><div><br /></div>Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-58950754260668575222023-09-30T19:48:00.000+01:002023-09-30T19:48:03.009+01:00O nosso chão prolongou-se ao norte<p>O lugar é o mesmo, o sentir diferente. Não há hotel, existe casa. O que era estrangeiro tornou-se família, o nosso chão prolongou-se ao norte. Já antes, um pouco mais a sul, algum tempo atrás, o tínhamos sentido. O lá e o cá confundem-se. Até o tempo, estranhamente quente, nos aproxima. Sentimos nosso o que antes era estranho. E se naquele dia não tivéssemos parado naquele liceu, se não tivessem sido simpáticos, se não nos tivessem encantado ao ponto de o termos deixado nas suas mãos? Se um dia ele não tivesse partido? Teria sido assim? Talvez não, mas decerto igual o sentir. Na verdade, não sei definir o que sinto, mas é certamente o que chamam felicidade. Por estes dias vagueio, flutuo no espaço e no tempo, no verde que nos envolve, no som dos pássaros, nos raios de sol, nas gentes que passam a fazer parte do nosso coração, do nosso cuidado, no sorriso das crianças, no viajar com quem antes devia, mas não tinha viajado. Literalmente, sinto-me leve, a pairar acima deste mundo que parece irreal. Dum dia para o outro, num golpe de asa, passei do normal para o irreal que não é mais que a bela realidade que em meu redor foi sendo construída sem que um plano tivesse feito, sem que a tivéssemos pensado. O melhor da vida acontece assim, sem plano, naquilo que sentimos, na ligação a gente que passa a ser nossa, da qual passamos a fazer parte. São apeadeiros assim, pequenas paragens no lufa-lufa, que nos lembram quem afinal somos.</p><p>Junho 2023</p>Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-34000111391231699062023-08-07T11:30:00.000+01:002023-08-24T15:56:34.912+01:00Georgina <div>Um dia, ainda eram eles pequenos e tinham todas as maleitas, regressávamos uma vez mais do hospital. Já não sei qual maleita e qual deles. Vínhamos cansados e com fome. Abri o frigorífico e vi vazio; ela olhou e reconheceu um banquete. Alexandre, dê-me esses dois ovos, esse resto de peixe, essa cenoura, um pouco de leite. E dali nasceu um soufflé que ainda hoje recordo, umas décadas depois. Delicioso aconchego para quem tinha passado horas num hospital.</div><div>Assim era a Georgina.</div><div>Roubei-lhe a filha, como ela dizia, mas ganhei uma bonita amiga para toda a vida, uma segunda mãe, uma generosa avó para os meus príncipes, uma família, deliciosos repastos, o segredo da cinza na arte de grelhar peixe, o gosto pela comida feita com amor, com sabor.</div><div>Uma chata que me vai fazer muita falta.</div><div>A vida é uma merda, dizia ela, mas ela não queria partir, não queria deixar de viver. </div><div>Não te preocupes, ficamos bem, o teu trabalho está feito, eu cuido dela e dos teus netos. Não mais terás de sofrer. </div><div>A vida é mesmo uma merda, mas tu ajudavas a que não fosse. Agora, precisas dormir, está na hora de descansares, de largares os tachos.</div><div>E Tu aí em cima, seja lá quem fores, recebe-a bem.</div>Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-13687262411207096592022-11-18T08:46:00.001+00:002022-11-18T08:46:25.595+00:00Desalento Enquanto em órbita pairava, o comandante foi tocado pela esperança. Por um longo instante, a fé foi sua irmã, penetrou na sua casa; a humanidade unia-se num propósito comum. Coisa rara, preciosa, única. Saboreou o bom que é ter esperança e a dor do desalento. Quando pousou, mergulhou na realidade, percebeu que afinal os homens continuavam homens, as mulheres seguiam sendo mulheres. Afinal era o medo, a fuga do diabo, a mais básica das reacções humanas quando sentimos o perigo. Logo esquecemos, voltamos a ser quem éramos, os mesmos de sempre, simples animais. A revolução não vingou, morreu na praia. Aceitemos este como o nosso destino, errado é pensar que doutro modo fosse. Ficou a esperança na ciência, no mundo livre, naquilo que conseguem fazer em prol de todos nós. Resta o desalento.Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-67590744581444042422022-10-06T20:27:00.001+01:002022-10-06T20:27:46.910+01:00Estrela da Manhã <div><span style="font-size: 12pt; -webkit-text-size-adjust: 100%; display: inline !important;">Vejam o absurdo, pensou o Comandante, a estrela da manhã é afinal um planeta, e a pandemia será, tudo indica, uma endemia, daqui a poucos meses. O que fazer com a nave que nos transportou durante estes dois anos? O que fazer com estes dois longos anos? Terá chegado o tempo em que finalmente as máscaras cairão, em que as estrelas voltarão a ser simples luzes brilhantes no firmamento, em que o ar será partilhado. Afinal Vénus tem duas faces num único corpo. De noite é planeta, ao despertar chamam-lhe estrela, a única teimosa no céu do amanhecer, antecipando o nascer do Sol, anunciando a passagem das trevas para a luz, dando a direção do nascente, o renascer dum novo dia. Nascemos e logo as nossas vidas ficam ligadas por um fino fio que começa em Vénus e acaba na estrela da manhã. Um fio invisível mas verdadeiro que esteve presente durante estes anos, das terras do sol nascente, até às terras onde o sol se deita, para lá do oceano que afinal não nos separa. Um indelével fio que nos continuará a unir, mesmo que não o sintamos, desta forma clara e evidente, como o sentimos no decorrer destes anos. Isso não esqueceremos. A borboleta bate asas no Japão e uma tempestade forma-se do outro lado do mundo. Num sistema caótico, no planeta que habitamos, depois de algo ter mudado, não é possível retornar ao ponto em que tudo começou. Só a estrela da manhã nos continuará a indicar o sol nascente.</span><br></div>Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-51534120018530534002022-10-06T20:27:00.000+01:002022-10-06T20:27:24.348+01:00Levamos vidaEsvaziamos, libertamos o espaço, levamos vida. Aproximamos o espaço ao lugar de onde se encontraria umas seis décadas atrás. Imaginamos o leve que sentiram ao chegar à nova casa. Talvez fosse o mesmo sereno vazio que agora sentimos ao vê-la, dia após dia, desocupada dos sons, dos cheiros, voltando a ter os ecos que a vida modelou. Terão encontrado paredes lisas, acabadas de pintar, uma cozinha com portas e dobradiças novas, a pedra da chaminé reluzente, o mesmo sol que hoje mergulha a casa num verão que termina, mas que ainda está quente. A vista sobre o bosque teria menos obstáculos, menos construções de permeio, mas já dava para a escola, para a rua outrora vazia, agora atulhada de carros. Encaixotamos uma vida, preservamos parte dela, descartamos outra tanta. Escolhemos os fragmentos que queremos para nós, aqueles que sabemos que queria que amássemos, pedaços que outros, mais adiante, irão decidir se serão descartáveis ou objectos eternos. Esvaziamos gavetas, armários, guarda-fatos e cómodas. Despimos as paredes, libertamos os tampos das mesas, enrolamos tapetes, embalamos, levamos. Como o passar das semanas, sentimos nos braços, no corpo, o peso duma vida, o peso do despedir, a leveza dum adeus suave, progressivo, ao nosso ritmo. A casa vai ficando vazia. O espaço fica. Em breve, pensamos nós, novos sorrisos ocuparão as duas assoalhadas, cozinha, casa de banho, corredor e varanda com vista. A vida segue na nossa memória, nos objectos que transportamos, no nosso respirar.Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-69626100344696714482021-12-21T13:09:00.001+00:002021-12-21T13:09:27.109+00:00AfastadosAfastamo-nos instintivamente. Uma reação ganha nestes dois anos. Ficamos na dúvida do abraço, a uma distância de aproximação controlada por ambos os pólos, como se algo nos atraísse para logo depois nos afastar. Cruzamos os olhares, tentando perceber o outro, procurando saber a distância, qual das forças é maior: se o desejo que nos aproxima, se a cautela que ganha sempre esta batalha. Voamos em orbitas baixas, distantes, mantendo o afastamento entre as naves, fitando uma vez mais o Natal. Um ano mais de uma série que não sabemos o fim, com várias temporadas, todas parecidas, coladas umas às outras. Parece que veio para ficar, que não nos quer largar, afastar-se de nós, deixar-nos em paz. Entretanto, diverte-se, travestindo-se de multiplas formas, num jogo sem graça alguma, que não queremos jogar. Somente queremos que seja Natal.Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-30673195245807150402021-11-19T13:24:00.001+00:002021-11-19T13:24:56.894+00:00Hábitos A tarde deu lugar à noite, um pouco mais cedo que ontem. Assim será até ao Natal. O Comandante ouve as notícias enquanto atravessa a cidade, no seu transportador individual, de regresso à sua nave. Faz semanas que o faz diariamente: da sua nave para a nave obreira; desta de regresso à sua. Não fosse o vazio, a quase ausência de companhia diária, diria que era o habitual, que nada de anormal acontecera. Rapidamente o hábito voltou a ocupar o seu tempo nas manhãs e no fins de tarde. Sente-se bem neste regresso, na redefinição do espaço de trabalho, na separação das restantes actividades. A sua nave voltou a ser a sua nave; o trabalho regressou ao seu espaço. As notícias são preocupantes, parecem ecos dum passado recente que queria tivesse acabado. As mesmas vozes; o mesmo discurso; os mesmos indicadores; a mesma antecipação do que está para vir. O comandante tem esperança que não o seja, que não tenha que subir novamente para órbita, mesmo que seja para órbitas baixas. Reconquistado o presente, não quer que este se altere novamente. #VaiFicarTudoBemAlexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-47405041127390249902021-10-22T08:14:00.001+01:002021-10-22T08:14:09.450+01:00A ausência dum sonho O comandante continua atordoado, como todos estarão, se forem sinceros. Foram demasiados meses numa cena que agora temos dificuldade em acreditar, em visualizar, em assimilar. O que se passou? Que parte deste filme é baseado em factos reais, que cenas são pura ficção? Sente-se num lento e progressivo acordar dum sono que não se lembra ter dormido, dum tempo que não sabe se já terá passado, dum estranho acontecimento que já terá acontecido, mas que ainda paira sobre nós. Quais as cenas dos próximos capítulos? Como esquecer tudo e voltar a viver como se nada se tivesse passado, como se nada se esteja a passar? Afinal em que etapa do voo nos encontramos? Ainda em velocidade de cruzeiro, fechados num casulo, ou em plena descida para um suave aterrar? O comandante tem esperança que não seja uma descida a pique, um novo embate no chão. Tem dúvidas o comandante, e todos as terão também. A aparência de normalidade torna tudo ainda mais confuso, mais absurdo. Não é o presente que é absurdo, porque esse é presente, mas o presente comparado com a recordação viva desses tempos. Tudo isto foi realmente preciso? Absurdo será ignorar o acontecido e seguir em frente sem nada mudar. Regressado à nave obreira, encontra ainda o vazio, a ausência de muitos, mas também os sorrisos e os abraços dos poucos com quem novamente se cruza, com quem volta a partilhar o mesmo espaço. Encontra os mesmos objectos, nos mesmos lugares, os mesmos percursos, cheiros e rotinas. A ausência terá sido realmente de meses ou afinal tudo não passou dum sonho mau e ontem esteve ali? Esse é o absurdo, a rotina segue o seu rumo como se nada se tivesse passado.Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-40917898263758725382021-10-05T19:21:00.001+01:002021-10-05T19:21:32.324+01:00Família Depois de quatro adiamentos, depois de devidamente purificados, certificados e revalidados, finalmente voamos para norte, para um pouco mais além do que na última travessia. Desembarcamos numa estranha bolha de normalidade; precisamos de algum tempo para nos habituar a esta realidade, ao quase apagar dos últimos tempos. Estranhamos os rostos descobertos que se cruzam com os nossos, as múltiplas raças, a chuva miudinha, o início do frio, a felicidade que sentimos, o terno acolhimento com que somos recebidos. A nossa prole alarga-se, ganhamos novas línguas, novos rostos, espaços lindíssimos que dizem ser nossos, que sentimos como nossos, apesar de os estarmos a pisar pela primeira vez. Somos carinhosamente recebidos por quem já sentíamos pertencer, mas com quem ainda não tínhamos partilhado um abraço, um olhar, um cúmplice sorriso, uma refeição, o comum cuidado com que o essencial não se perca na tradução. Não sonhámos aqui chegar, mas sentimos que é precisamente o que queríamos; não planeámos, mas aqui estamos. Acontece e nada mais é preciso. Os laços estão unidos e sentimos que assim permanecerão. A chuva e o sol revezam-se, lembram-nos que o Outono já chegou mas que o Verão ainda não completamente se deitou. Seguimos o caminho por eles traçado, por uns dias habitamos os seus espaços, os seus hábitos, as ruas, os sabores, as gentes. O céu chora na hora do regresso; ficam no cais desta despedida e nós partimos na promessa dum encontro, um pouco mais adiante, no próximo Natal.Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-70055816355749083432021-09-13T16:43:00.001+01:002021-09-13T16:43:35.603+01:00No passa nadaDe novo viajamos. Meses depois, por uns dias, vivemos um pouco mais a norte, rodeados de outras línguas, montanhas, verde, mar; envolvidos num calor que não esperávamos, pouco usual por aqui. Somos recebidos pela alegria de quem nos aguardava, por quem nos esperava na calma ânsia de nos mostrar estes lugares, aqueles que são seus e que agora passam a ser um pouco nossos. Deixamos o tempo passar, simplesmente; no passa nada. Basta-nos o estar, juntos, desfrutando em conjunto o momento, a paisagem, estas terras, estes hábitos. De novo questiono-me sobre o caminho. Que passos teremos dado até aqui? Que fizemos para merecer tal dádiva? São lugares estranhos, mas ao mesmo tempo familiares. De aquele tipo de estranho que rápido se entranha, que logo passa a ser nosso. Estar é sempre para lá daquilo que tínhamos imaginado. Os lugares e as pessoas estão muito para lá do que tínhamos conseguido esboçar em pensamento: uns espaços são afinal maiores; outros tínhamos concebido mais amplos. Somos recebidos como príncipes, como sempre tivéssemos estado, como se de família se tratasse. E afinal é isso mesmo, são novos ramos, com folhagem e flores distintas mas em tudo iguais. Os nossos galhos que se unem com os deles, os deles que se entrelaçam com os nossos, criando um novo bosque, único, muito verde, muito fresco, bonito. Em torno duma mesa partilhamos sabores, histórias, desenhamos pontes, sorrisos. Dum golpe o tempo voa e voltamos a partir. O abraço na despedida tudo condensa, fica agarrado à pele, diz-nos que em breve nos encontraremos, que logo, logo, queremos voltar.Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-59387708285441074662021-09-04T15:45:00.001+01:002021-09-04T15:45:29.711+01:00PalcoO Comandante, por uns dias, assumiu um outro papel, travestiu-se de actor, esqueceu a pandemia que nos cobre os rostos. No palco ela não entra; no palco ele descobre-se. Por uma hora, entra noutro planeta, esquece o Comandante, a situação em que temos estado, a curva. Um lapso de felicidade que lhe enche a alma, que o deixa a flutuar em órbitas baixas, com os pés assentes na Terra. A nave assumiu a forma de palco, ganhou uma nova tripulação; é um outro planeta, uma outra atmosfera, um diferente respirar, um deixar ir, uma ínfima fração em que o tempo e o espaço se contraem. Algum tempo atrás, o Posto de Comando anunciou o dia da Grande Libertação. O Grande Timoneiro afirmou, firme e sorrindo, que faltam poucas etapas para derrotarmos o inimigo comum, para reconquistarmos a Liberdade. O dia estará perto, começamos a sentir o alívio. No palco, o alívio é total. No entanto, o Comandante está cético, não baixa a guarda e assim o fará enquanto o bicho andar por aí. Mas ganhou alento, esperança, arrancou as ervas que se acumulavam na proa desde o início da pandemia, desde que o recolhimento deu às ervas liberdade para crescerem. Quis assim marcar o renascimento da esperança. Visitou amigos e deixou que amigos entrassem na sua nave. Com cuidado, com a devida distância, mas abraçando-os, sentindo o seu calor. Por ora, a nave é o palco, o Comandante ausentou-se, uma outra personagem assumiu o seu corpo. #VaiFicarTudoBemAlexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-64880529585918691962021-08-26T10:06:00.000+01:002021-08-26T10:06:13.696+01:00LunaEu tinha medo dos cães e ela queria festas. Já não fujo deles, mas agora ela partiu, para mais não voltar. Aos poucos conquistou-me, deu-me muito mais que eu tinha para lhe dar. Insistiu, uma e outra vez, uma pata após a outra, pequenas torrinhas, a cabeça no meu colo e finalmente toda ela em cima do meu peito. Eu tinha medo dos cães e agora já não tenho, e agora já não a tenho. Ela adorava festas na cabeça, debaixo do focinho, no pescoço, ao longo da coluna, até junto da cauda. Adorava o sol e o nosso calor. Não gostava dos outros gatos. Ela veio, eu não a queria; ela insistiu e eu acabei por ceder. Era a nossa gata e eu perdi o medo dos cães.Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-40253360899403072232021-08-12T16:30:00.001+01:002021-08-12T16:30:04.055+01:00AviõesOs aviões continuam a espantar-me, a fascinar-me na sua aparente leveza, na sua monstruosa suavidade, mas o aeroporto é agora um local habitual, muito mais pequeno que antes, apesar de ser várias vezes maior. De espanto passou a local de abraços, de chegada e de partida, de emoções. Eles vêm e vão; por regra nós ficamos. Desta virão eles; um destes dias seremos nós a partir e eles a receber-nos, para depois nos verem partir, uma vez mais. Algo fizemos para que deste modo fosse, e assim é. Estarão e vão deixar de estar para mais adiante, lá ou aqui, nos reencontrámos. Os risos e sorrisos, esses, ficam sempre connosco, como fica a alegria da chegada e o amargo da partida. Tenho dificuldade em vislumbrar o caminho que me trouxe aqui, aquele em que o adolescente que sinto ser, envelheceu, passou a ser algo mais, foi pai destas maravilhosas criaturas, as viu crescer e partir, onde o aeroporto deixou os sonhos e passou a ser real.Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-79839569549161755072021-06-25T21:48:00.000+01:002021-06-25T21:48:13.868+01:00E agoraE agora que devo sentir? Estão os três ali fora sentados, em torno da comida, da conversa, de algo que nos une para lá da presença. São e já não são; deixaram de ser e continuam a ser. Existe algo maior que isto? Deste sentimento que me encolhe a garganta, que me verga perante a alegria de estar, que me confunde, que me deixa perplexo com o que criámos, com aquilo que, sem consciência, agora existe, com a enorme beleza de tudo isto. Ela uma mulher; ele um homem; a mãe ainda mais mãe, ultrapassada pela vertigem da mudança, pelo encanto de estarem aqui, neste lugar que é casa. Conversam sobre tudo e sobre nada, envoltos numa morna tarde, pouco usual por estas paragens. Um dia em cheio; até a seleção passou para a próxima fase mantendo a cabeça erguida. O Balu e Cinzentinho rondam a mesa, esperam pelos restos do maravilhoso peixe, eles também apatetados pelo calor, pela comida, pela presença. Porquê duvidar da beleza da vida, do encanto deste mistério, da brisa quente, do céu azul? Sinto-me adormecer, embalado pelo Arinto, amparado por eles. #VaiFicarTudoBemAlexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-28504529358635960532021-06-24T15:58:00.001+01:002021-06-24T15:58:50.317+01:00E agoraE agora que devo sentir? Estão os três ali fora sentados, em torno da comida, da conversa, de algo que nos une para lá da presença. São e já não são; deixaram de ser e continuam a ser. Existe algo maior que isto? Deste sentimento que me encolhe a garganta, que me verga perante a alegria de estar, que me confunde, que me deixa perplexo com o que criámos, com aquilo que, sem consciência, agora existe, com a enorme beleza de tudo isto. Ela uma mulher; ele um homem; a mãe ainda mais mãe, ultrapassada pela vertigem da mudança, pelo encanto de estarem aqui, neste lugar que é casa. Conversam sobre tudo e sobre nada, envoltos numa morna tarde, pouco usual por estas paragens. Um dia em cheio; até a seleção passou para a próxima fase mantendo a cabeça erguida. O Balu e Cinzentinho rondam a mesa, esperam pelos restos do maravilhoso peixe, eles também apatetados pelo calor, pela comida, pela presença. Porquê duvidar da beleza da vida, do encanto deste mistério, da brisa quente, do céu azul? Sinto-me adormecer, embalado pelo Arinto, aparado por eles. #VaiFicarTudoBemAlexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-34277091507949985062021-06-08T12:51:00.001+01:002021-06-08T12:51:45.803+01:00AssobiandoEstacionámos a nave numa zona precária que ainda não sabemos se definitiva. Tudo indica que sim, mas ainda sentimos o chão a fugir, o equilíbrio instável. Estamos meio imunes ao bicho e ao mundo que nos rodeia, aguardando, lá para o final do mês, a segunda e definitiva camada. E depois? Continuaremos de pedra em pedra, procurando não molhar os pés, manter um norte, seguir a estrela. Não está fácil! Atrás dos tempos, vêm tempos e outros tempos hão-de vir. A única certeza é o avançar do relógio, a incerteza do amanhã, a deriva destes tempos, a surpresa constante a cada passo. Quem diria que aqui estaríamos, vivendo estes tempos, desta forma. Na verdade, nunca adivinhei o futuro, este sempre me surpreendeu, para o bom e para o mau. Somente esperei, na certeza que um dia não mais me chamarão, que um dia deixarei de esperar. Da escotilha observo o mundo lá fora, agitado, indiferente à luz e ao cheiro, num fluxo constante, ignorante, indiferente, alheado destes tempos, fingindo que outros serão , que nada se alterou. Não sei se conseguirei voltar. Questiono o que mudou em mim, que alterações o mundo sofreu, como estarão os outros. Talvez não queira voltar ou simplesmente queira acordar, ignorando, seguindo como se nada fosse, assobiando para o ar. #VaiFicarTudoBemAlexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-21647724894128861532021-05-19T09:19:00.001+01:002021-05-19T09:19:43.793+01:00Sacudir as amarrasSentado no transportador individual, atravesso a cidade, na rádio a voz dum poeta: “estamos a sacudir as amarras da pandemia”. Sete palavras que resumem aquilo que sinto: enxotamos o bicho que nos encurralou, que nos mantém atentos, que nos afasta. Queremos voltar, como quase sempre queremos; talvez agora mais que nunca. O regresso é um caminho individual, próprio, que agora se assume colectivo, num tempo cheio de sinais, símbolos e significados, que duvido saibamos ler. O que restará da cidade estranhamente silenciosa, das bolhas em que nos obrigamos a viver, do vazio dos abraços, dos beijos que já não damos, das mãos que não apertamos, do gel purificador de almas. À minha volta, os tempos fingem ser o que eram, as filas regressam, o frenesim da cidade ocupa-nos de novo os poros, os sentidos. Alguma vez não foi assim? Certo ainda não o é, mas queremos que seja. Ainda não é história, mas já começa a ser passado, a estar enevoado, a fazer parte das memórias planas, turvas, aquelas onde faltam pedaços, onde outros acrescentam torres que nunca existiram. No entanto, já não o sinto do deste modo. O contacto com a nossa finitude, com a de outros, bem próximos, torna tudo isto estranho, menor. Tudo é relativo, disse e tinha toda a razão. Um acontecimento só é grande até que outro maior o ofusque, o coloque na sombra. Já me dou por contente se a cidade continuar a ser o que já foi. #VaiFicarTudoBem Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-13889336911984969342021-04-18T18:34:00.001+01:002021-04-18T18:34:43.671+01:00SolA nave, estacionada a Oeste, é banhada por um sol esplendoroso. As portadas, viradas a nascente, estão quentes, a luz entra preguiçosa, morna, enquanto as vou abrindo. RP, a nossa gata selvagem de estimação, já me espera no passadiço exterior, aguarda o pequeno-almoço. De imediato entra em casa, inspeciona e sai. Não quer perder uma gota de luz, este abraço que sentimos em cada raio do sol. Sento-me no beiral, na única existente nesga de sombra. Ainda ontem fugia dela, hoje procuro-a. Sem ela era-me insuportável estar aqui sentado, não aguentaria a rude carícia do sol, o seu toque. No leitor espacial desfolho as notícias do dia. Múltiplos pássaros piam à minha volta. Não os vejo. Não fosse o ruído monótono dos motores e era o silêncio perfeito. Vou para dentro, os braços escaldam. A casa contrasta, obriga-me a vestir uma camisola. Sabe bem pensar que é verão, sendo primavera. #VaiFicarTudoBemAlexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-14214387954726472152021-04-01T09:03:00.001+01:002021-04-01T09:03:13.039+01:00RuídosHoje está frio, sinto-me abraçado por uma bondosa moinha que vem do céu cinzento. Torna tudo mais fácil, leva a que nos queiramos recolher, confinar no nosso espaço, no morno que está lá dentro. Uma t-shirt não é suficiente. É Páscoa e não é, uma vez mais. A cidade está barulhenta. Oiço o comboio a rolar, os pneus no chão molhado, os motores, os estores que rangem ao abrir. Hoje parece que oiço mais, que distingo cada som, cada ruído. Um pássaro chilreia, um outro responde do outro lado do pátio. Distingo o seu cantar da restante cacofonia citadina. Aparece um terceiro piar, distinto, compassado: pi, pi, pi. Não sei como reproduzir este cantar. Resguardo-me, apesar da brisa fresca, molhada me saber bem. Um bom dia para vocês. #VaiFicarTudoBem Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-18293607139800525182021-03-30T14:03:00.001+01:002021-03-30T14:03:19.633+01:00Assintomático Desconhecido Houve um tempo em que vivíamos num planeta, num mundo normal, em que estar em órbita era a excepção. Um tempo em que não aguardávamos pelo fim seja do que for, um tempo em que a vacinação era algo vulgar e não era uma operação militar em massa. Na verdade, escutando os noticiários orbitais, descobrimos que não só temos vacinas mas também vácinas e inoculações, dependendo da latitude, do repórter e do entrevistado. Talvez seja por a doença não ser exactamente a mesma, parece-me ter variantes regionais. Vai desde o normal Covid, até Cóvid e Cuvid ou ainda Cuvide, uma forma conforme o último acordo ortográfico. Depende somente da proveniência dos interlocutores. A porra, é que se chame como se chame, a merda do bicho é o mesmo e nunca mais vai para a terra dele chagar os cornos a outros. Voltou o sol e o som das crianças a brincar no recreio da escola. Não mais ouvi o cantar dos pássaros que nos encantou faz um ano. O vizinho de cima comprou uma passadeira e insiste em correr em cima dos meus ouvidos. Os cães ladram e a caravana passa. Este monte de parvoíces deveria ser dedicado ao grupo de Assintomáticos Desconhecidos, uma designação que ouvi recentemente e que mostra que ainda existem aqueles que insistem na não revelação da identidade. Talvez sejam tímidos nada mais. Uma boa semana para vocês todos. #VaiFicarTudoBemAlexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1587471648342971212.post-10827962723382261732021-03-26T14:50:00.000+00:002021-03-26T14:50:55.735+00:00Fusível <div>Para esta ele não estava preparado, porque nunca o estamos. Para ser verdadeiro, ele esperava que não voltasse a acontecer, que o castigo, que ele não sabe qual é, já estivesse expiado. Dum segundo para o outro reapareceu, deu os primeiros sinais da sua graça (sem graça nenhuma). Num par de horas instalou-se, alargou os seus territórios, aniquilou-o, queimou-lhe os fusíveis, encheu-lhe o bucho de vermes, e ele, coitado, deixou de ter forças nas canetas, chorou, apelou aos seus santos, entregou a nave, agarrou firme a mão daquela que todos os dias lhe traz uma gota de felicidade, aquela que o supremo algoritmo químico-genético determinou como sendo o seu par perfeito, a única, a sua cara metade. E partiram. A primeira vez que se lembra de ter sorte, umas décadas lá atrás, foi no acaso do cruzamento da sua imperfeita oval com a órbita dela. Agora, completamente calado, no momento em que acaba de encostar a nuca no velho transportador individual, conduzido por ela, volta a sentir a fragilidade da finíssima camada que o protege. Tinha esquecido que assim era. Ela projecta o olhar em frente mas é ele quem ela vê. O olhar dele tinha mudado e ela já se tinha apercebido. Em piloto automático, meio cá, meio lá, atordoado, foi recolhido numa enorme nave, em forma de cruz, com vários sectores e muitos obreiros. Medido e remexido, a conclusão é só uma: os sinais do seu corpo não enganam; uma intervenção sistémica é fundamental. Nota, que nestas imponentes naves, de branco e vermelho pintado, as obreiras são em muito maior número, têm farda, são altamente profissionais, andam muito depressa e sorriem sempre que passam. Não será por coincidência que a que o recebe à porta da luxuosa célula de isolamento, de nove por cinco passos, a si destinada, tem o nome de sua irmã, também ela uma antiga obreira. No silêncio da noite, entre sonhos e misturado com eles, escuta o eco das máquinas, as obreiras incansáveis nos porões, o silvo do vapor, o acre dos reagentes, o calor das enormes cozinhas. Às primeiras horas da manhã, o progressivo aumento do ruído de passos no corredor, o precipitar de obreiras sobre o seu corpo inerte, a azáfama de extrair e infiltrar líquidos, fazer medições, sondar, procurar o corpo estranho no estranho corpo. A mesma rotina, dia após dia. Ouve uma dizer que já sabem qual é o fusível fundido; não é aquele que corre nas notícias. Agora, somente querem medir e voltar a medir para terem a certeza que o comandante fica estável e com forças suficientes para reconquistar a sua nave. Outra sorri e diz: o homem é novo, vai aguentar. Está em isolamento, na verdade está somente dentro de mais uma caixinha na matriosca de confinamentos em que tem estado enfiado faz mais de um ano. À sua célula, em boa parte do dia, não chega mais que o silêncio. O comandante espanta-se. Ao tempo que não estava simplesmente a olhar e a escutar, sem mais nem porquê, em meditação. Que falta lhe faz, que bem lhe sabe. Para lá da janela a serena azáfama da cidade, a luz do sol, a longa travessia sobre o rio. Mantém-se em contacto com a sua mais que tudo, isolada algures, numa órbita próxima, escondendo a preocupação, rodeada de contactos de naves amigas que a vão confortando, oferecendo acolhimento, um interdito abraço, um simples sorriso, uma palavra. No primeiro dia, ele recebe uma carta da sua anjo voadora, e chora. Muitos outras mensagens chegarão, apoiando o seu regresso, a reconquista da sua nave, o seu bem estar. O grupo de apoiantes vai-se adensando, dia após dia, cravando a âncora de apoio, clamando pelo seu regresso, dando-lhe as forças que agora lhe faltam. À frente vai a anjo voadora, com o seu chapéu de arlequim, a dar cambalhotas e piruetas no ar, acenando, puxando pelos outros, animando o comandante. Ao fim de alguns dias, as obreiras reduzem a actividade, as tubagens são em menor número e o comandante precisa somente de descansar e manter a reposição de fluídos. E ele sorri e chora. Anuncia-se o regresso à sua nave. O comandante tem pressa, a sua princesa faz anos e ele tem de estar lá. Imagina o sair dali, chegar à sua nave, um banho a sério, o primeiro beijo. Afinal as obreiras hesitam, tem dúvidas que todos os fusíveis estejam realmente no sítio correcto. Retiram-lhe um pouco mais de fluidos, mandam analisar. E na manhã do nono dia, agora sim, parece estar pronto, pode regressar.</div><div><br></div><div>Hospital das Descobertas, Lisboa, Março de dois e vinte um.</div><div><br></div><div>(Esta crónica é para todos vocês que através de mensagens, telefonemas e pensamento, estiveram comigo nesta travessia, que não acabou, mas que agora vai em águas muito menos turbulentas. Grato pelo vosso generoso carinho. É também dedicada a todas as profissionais que cuidaram de mim.)</div>Alexandre Gilhttp://www.blogger.com/profile/15674672996795856429noreply@blogger.com0